A minha jornada de dissonância cognitiva

 

Trabalhei, pratiquei, estudei, aprendi e ensinei sobre a arte oriental de Feng Shui ao longo de 20 anos — mas tenho evitado ao máximo este termo nos últimos anos. Este é um labor de relação ecológica, animista, visceral e profunda de corpo-no-lugar, mas relativamente mal decifrado no ocidente como soluções redutoras e simplistas para problemas supostamente individuais — vou-me abster de trazer para aqui as complexidades e contextos da metafísica e cultura chinesa, assim como da comodificação e superficialização destes saberes e práticas. Destes 20 anos, 10 foram passados em profunda dissonância cognitivao que sentimos quando nos apercebemos da inconsistência ou contradição entre cognição e acção — recordando que quando dou início esta viagem estava profundamente envolvida nos primeiros passos da permacultura e movimentos de transição locais.

O fardo incómodo que trazia dentro, em pensamentos e sentires inconsistentes, só crescia cada vez mais. Em 2016 queria já afastar-me do termo “Feng-Shui” por estar inevitavelmente agregado a uma série de crenças e comportamentos que não suportavam a minha aprendizagem complexa, multi-camada, ecológica e sistémica da vivência de corpos-no-lugaracabei por me afastar de vez apenas em 2021. Como referia muitas vezes nas aulas, o Feng Shui não tem a ver com “onde ponho a cama ou o sofá,” mas com relações, co-aprendizagem e fascínio aos lugares vivos que nos sustêm a vida, relacionando-se profundamente com literacia ecológica, ecopsicologia e eco-mitologia.

Mais recentemente encontrei no livro de 2011 de Joseph Dodds, Psychoanalysis and Ecology at the Edge of Chaos: Complexity Theory, Deleuze/Guattari and Psychoanalysis for a Climate in Crisis, a descrição literal da minha dissonância cognitiva com o trabalho que fazia na altura. Neste caso, adiciona-se um mecanismo de defesa colectivo e inconsciente, o deslocamento — a mente substitui as coisas sentidas por um novo objetivo ou por um novo objeto.

Dodds comenta que em termos de deslocação, é interessante considerar os comentários de Marshall (2005) sobre certas tendências da Nova Era, que, embora levem muitos a preocupar-se profundamente com a ecologia via uma espiritualidade da “terra-mãe,” que o fazem apenas num espaço para deslocações defensivas. Marshall relata a história de um diretor de uma cadeia de hotéis de luxo nas Maurícias: “levamos estes problemas ambientais muito a sério … somos a primeira empresa nas Maurícias a abrir um hotel Feng Shui” onde as pessoas podem reconectar-se com o ambiente natural, incluindo “refeições especiais de Feng Shui” onde “tudo é arredondado para ajudar o movimento das forças chi.” Marshall vê isto como emblemático de uma certa resposta à ameaça ecológica, partilhada pelos “turistas que se identificam com o marketing da Nova Era e que pagam um prémio pelo tema ecológico do seu quarto com ar condicionado.” Além disso, ao visitar uma grande e conhecida livraria, descobriu que, embora vendessem mais de 30 livros sobre Feng Shui, não tinham em stock um único volume sobre eficiência energética doméstica.

Perante um problema que 80% das pessoas dizem ser importante — o das alterações climáticas —, muito mais pessoas desejam controlar e gerir o movimento da energia chi do que a energia real que sai pelas janelas. Dodds continua a parafrasear Marshall: “É difícil não pensar no Feng Shui como o equivalente ideológico das dioxinas que ocupam e bloqueiam receptores-chave no corpo que deveriam estar a receber nutrientes. Optámos por substituir os problemas ambientais assustadores e aterradores por problemas pseudo-ambientais manejáveis e divertidos.”

A minha jornada de dissonância cognitiva é aqui descrita na perfeição. O meu desconforto (e desconsolo) crescente perante o que sentia ser o reducionismo, a apatia e o deslocamento das reações e ideações da prática do Feng Shui — de tal forma que, para além das sérias questões de apropriação cultural, abstive-me de usar o termo daí para a frente.

Foi uma viagem dura e desconfortável até conseguir nomear o que me incomodava: a constante expectativa individualista de respostas rápidas, inspiradoras, simplistas e tranquilizadoras. O constante evitar, um escapismo e negação profundamente antropocêntricos, das questões difíceis do nosso tempo. O que me ajudou foi mudar de referências e (re)aprender outras formas de ser, outras estruturas afectivas e cognitivas que permitem a maturação em responsabilidade e complexidade, numa realidade impermanente. 

 

REFERÊNCIAS

Dodds, Joseph. Psychoanalysis and Ecology at the Edge of Chaos: Complexity Theory, Deleuze/Guattari and Psychoanalysis for a Climate in Crisis. Routledge, 2011.

 

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.