Celebração do lançamento dos {cadernos de Oikos-Psykhē}

O primeiro volume dos {cadernos de Oikos-Psykhē} é um caderno de estudo sobre vários temas dissonantes da Ecopsicologia, tópicos tão desafiantes como de sustento

A Identidade Moderna

Os muros são altos e as lentes espessas.

 

Por onde começar? Como nos podemos aperceber das lentes com que vemos o mundo? Daquelas que moldam as categorias, conceitos e verdades? Como a Identidade Moderna evita que maturemos e relacionemos com os outros não humanos? Como impede a sabedoria mamífera de nos sustentar?

Trago aqui um pouco do (a)braço crítico da Ecopsicologia, uma tarefa essencial que dolorosamente levanta várias peles, que confundimos com a “verdade”. Há muito por onde olhar e escolher, os vários cacos que nos aprisionam. O (a)braço crítico da Ecopsicologia é também onde nos conseguirmos assumir enquanto ignorantes objectificadores da Natureza, pela necessidade urgente de produção, pelo desrespeito e amnésia generalizados, pelo esquecimento de como realmente nos entregamos ao complexo aqui. Exigindo respostas inspiradoras das árvores, dos pássaros ou das flores, que nos auxiliem unidireccionalmente nas conclusões e significados de dilemas exclusivamente humanos e individuais. E sim todo o extractivismo, apropriação e exigência gratuita, descontextualização e psique mineradora do cacau aos cristais, do sândalo à canela, faz parte da cognição extractivista inerente a esta cultura não me refiro aqui aos saberes e relações tradicionais, mas à violenta escala massiva que, comercial e industrialmente, extirpa tudo.

A Identidade Moderna manifesta-se quando acreditamos que o nosso lado é o certo, o neutro, o normal, o produto natural da evolução ou desenvolvimento da civilização –onde já excluímos o resto do mundo. Que assumamos a bússola partida, o estilhaçar de referências normativas, excepcionalistas e invisíveis. O (a)braço crítico da Ecopsicologia é uma viagem ao submundo, e o momento de tirar a pele dói sempre. Pode ser genuinamente avassalador e desorientador, embora o corpo, sem palavras, se recorde. Estar sem pele dói e queremos evitar a todo o custo este lugar, ou sequer falar sobre ele. No entanto, se não passarmos por esta abrasão iniciática ciclicamente, a mudança de paradigma teima em não acontecer. Que possamos lentamente recordar e voltar, também com carinho pelo nosso desamparo e pelo que não sabemos.

O paradoxo de desaprender paradigmas culturais, como a Identidade Moderna, não é chegar a algum lugar fixo como sempre nos ensinaram, mas abrir a pensamentos e sentimentos em constante desenvolvimento e procura, ainda bem desafiadores. Não é um problema a ser resolvido, mas um fluxo a ser compreendido nas suas limitações e pontos cegos. A Identidade Moderna não é inválida, é apenas bastante parcial no seu âmbito de percepção. Não há simples soluções, pois, por de ser um processo contextual/cultural e comunitário, são necessárias mudanças intergeracionais que precisam de âncora no terreno, no corpo e nas histórias partilhadas. Um caminho do meio, colectivo, híbrido e de fertilização cruzada.

São movimentos, fluxos, onde um dos desafios é desprender a ilusão do lugar/olhar fixo e profundamente binário e entrar real e humildemente na conversa do paradoxo. Não há pureza, mas Vida híbrida. Há atenção, compromisso e responsabilidade. O aparente simples detalhe de não hierarquizar as relações. A entrega, rendição e presença.

São violentamente plantados em nós, valores de dissociação (e consequente profundo isolamento) e controle constantes. Valores que continuamente cortam as nuances e valiosas subjectividades das múltiplas relações de parentesco. As múltiplas linguagens não são verbais, mas sensoriais, oníricas, intuitivas e instintivas. Não se regem pela gramática, mas pelo corpo poroso. Não se forçam, espremem ou exigem. Permitimos que aconteçam. Tal como dormir, como escrevi neste artigo: “Durante o sono sejam 5 minutos ou 5 horas, não interagimos verbal ou racionalmente com o mundo, mas ficamos sensorialmente mergulhados no seu mistério e é aqui, nestas paisagens oníricas, de fronteiras imaginais, que estamos de igual para igual com todas as outras entidades, presenças e vidas que nos rodeiam e se relacionam connosco a todos os momentos das nossas vidas. Uma sesta pode ser generativa e relacional, abrindo canais profundos de criatividade e entrega. Que possamos render-nos à fértil hibridação dos diálogos não verbais que nos sustentam e envolvem, dormindo em ressonância e não em isolamento.” O corpo recorda-se desses diálogos, mesmo em sensações fugazes e passageiras.

Que nos possamos rir, também com carinho, da nossa ignorância e profunda imaturidade. Sem assumir estes pontos cegos no nosso comportamento e exigência não conseguimos maturar e responsabilizar-nos. Porque o regresso acontece no corpo a cada momento. Bem aqui. O caminho de volta vai contra o que nos é plantado. É um caminho em humildade, não para chegar, mas para estar e escutar. Demora.

{raiz e essência da identidade moderna}

 

A raiz e essência, estão usualmente bem contaminadas com expectativas lineares e puristas –assim ortogonais e arrumadinhas. Mas, assim como não há linhas direitas num lugar, mas passagens orgânicas e fertilização cruzada, convido a considerarmos as nossas muitas raízes, as diversas essências e as múltiplas estruturas que nos compõem. Sempre em co-criação viva, híbrida e multidirecional, com os contextos de vida. Acolhem muito, pois no corpo sazonal e cíclico somos muito mais resilientes e inconstantes do que nos conseguimos ver.

A ideação dos lugares selvagens como os únicos lugares legítimos e puros de conexão é um sintoma da cultura moderna, pois de um ponto de vista de quem é paisagem isso não existe. Não existe separação entre cultura humana e o território onde os seres selvagens se movem, pois as populações conhecem as pistas, movimento e ritmos.

A Identidade Moderna perdeu o fluxo desse contínuo na psique fragmentada e binária, onde há lugares legítimos e outros não. A questão é que a ideia da Identidade Moderna não é um projecto individual, final ou sequer estável. É um caminho intergeracional, desconfortável e sempre em conjunto com o mais que humano. A necessidade de conciliar, em uníssono e convergência é, paradoxalmente, parte do projecto cultural onde nos encontramos embebidos (o absolutismo da pureza, ou a ilusão que as migalhas e nódoas não devem existir). Neste projecto cultural, a polivocalidade, a pluralidade, e a diversidade devem ser reduzidas ou superficializadas (daí a enorme dificuldade nas relações com outros não humanos). O desafio é aceitarmos essa pluralidade em nós. Por isso também costumo dizer não temos uma essência ou um propósito. Temos muitos, diversos, contrários e paradoxais. Somos metamorfos e responsivos ao que é necessário a cada momento (biológica e psicologicamente).

Genericamente temos pouca noção do quão limitada e perversamente agimos, com as melhores intenções, mas completamente confinados a uma hegemonia, excepcionalismo, arrogância, idealismo e individualismo. Num desrespeito e extorsão dos lugares, dos outros, da alteridade. 

Talvez por nos separarmos tanto, projectamos uma visão romântica dessa presença no chamado lugar selvagem. Quero notar que esta é uma questão colectiva, numa cisão profunda de uma cultura que sempre procura o controle (mesmo que ache que está a fazer diferente). O selvagem implica um lugar mais ou menos desconhecido, espontâneo, que não controlamos e avassalador na forma como nos inunda os sentidos. É realmente o tocar no inconsciente. Mas o romantismo ocidental moderno pelo selvagem distancia-se naturalmente da relação visceral, pois assenta na iliteracia e desconexão actual, novamente numa expectativa de transcendência, pois o selvagem está lá (apenas) fora.

{relações pluriversais}

 

O caminho de voltar, de nos rendermos e entregarmos às relações pluriversais é longo e desafiante. É um processo intergeracional do qual podemos escolher intencionalmente fazer parte, não como quem vai resolver, arranjar ou solucionar, mas como um re-aprender de uma presença diferente.

Sendo cada um de nós apenas um fio da complexa rede da vida, sempre que nos permitimos entrar por uma destas fissuras paradoxais encontramos amparo e sustento.

O (a)braço crítico da Ecopsicologia segura no colo a difícil tarefa de pôr em causa os nossos fundamentos culturais e, consequentemente, metabólicos -redescobrindo a prática da Ecopsicologia baseada no afecto e complexidade viva. Estamos tão imersos nestas narrativas lineares que sair deste reflexo fechado é um mergulho num abismo de profunda ignorância… em humildade. Não é para controlar mais, mas para pertencer. O forjar, alimentar e manter estes espaços/tempos limítrofes onde estas conversas e lutos possam ocorrer é fundamental.

É importante que, enquanto caminhamos pelo desconforto e desconsolo, que descansemos em lugares de inspiração, encantamento e conforto. Idealmente sem que isso nos dissocie do processo, sem que evite que toquemos onde dói, sem que desviemos o olhar da ferida aberta. Mas o paradoxo do processo vivo de desaprendizagem é isso mesmo, não é dual ou binário. Ou seja, podemos ser desafiados e em responsabilidade reunir conforto ao processo.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.