Virgens Negras e Revolução

Para quem não sabe, o livro d’O Santuário foi tecido em potentes conversas e encontros espontâneos com Virgens Negras, entidades ecologicamente espessas, revolucionariamente misteriosas e potentemente arcaicas, que me ensinaram que a inspiração não é uma elevação, mas um mergulho. Daqueles fundos que revolve as entranhas. Apesar de hoje em dia, a primevas Virgens negras serem demasiadas vezes, reduzidas e colapsadas em narrativas modernas de espiritualidade individual, o que lhes retira muita da sua potência agitadora.

Mas elas ensinaram-me que a sua presença é coletiva, insurgente e feroz. São forças profundamente ecológicas e revolucionárias.

As Virgens Negras libertam escravos e são visceralmente anti-coloniais. A sua escuridão não é ausência, é derrame de mistério, de tempo, de fibras e memórias revolvidas. É justiça. Esta força não serve para nos consolar, mas para exigir e clamar pelo valor intrínseco e visceral de todos. TODOS. A figura cristã moderna ecoa algo muito mais antigo, que retorna das cinzas, uma e outra vez. Algo que ainda carrega o fogo primordial nos ossos. A deusa morta e renascida, Ataegina, que se levanta das terras queimadas com a força do Teixo, venenoso e sagrado, e abraça a fluidez rebelde dos rios Guadiana (corpo de água de Diana, ou Ana, a que vê no escuro e ensina com o coração) e Tejo.

A associação entre Ataegina e as Virgens Negras não é apenas simbólica, é geo-mítica.

Os topónimos, as inscrições em pedra, os contos e a iconografia das cabras, das águas e das árvores (como o Teixo) contam-nos de um tempo profundo, não linear, mas cíclico, como o tempo da terra. Há pelo menos 8 Virgens Negras possíveis em Portugal. E, não deixa de ser interessante, que a forma da Virgem Negra que se enraizou nas Américas colonizadas, tenha sido exatamente a Virgen Negra de Guadalupe. Apesar de existir no território ibérico muito antes das violentas colonizações (o culto à Virgem de Guadalupe fixou-se no território português logo após a batalha do Salado, em 1340), foi esta figura feminina e negra que se hibridizou com divindades indígenas locais e se recriou como a patrona dos migrantes e dos escravos que se insurgem por liberdade.  

O livro d’O Santuário torna visível como Ataegina continua a cobrar que escutemos com o corpo, com a terra, e não com o olhar analítico da modernidade redutor e superficial. Como lembram autores como Martin Bernal (Black Athena) ou Lucia Chiavola Birnbaum (Black Madonnas), estas figuras são expressões da memória mítica que resiste à dominação, aos apagamentos e às conversões simbólicas que tentam conter e domesticar o sagrado.

No fundo, aquilo que nos falta para escutar a potência da Virgem Negra, ou de Ataegina, não é apenas contexto histórico, mas também parentesco, responsabilidade e maturidade colectiva.

A perda do entrelaçamento relacional, da escuta ecológica, contextual e simbiótica, faz com que a sua presença hoje nos pareça vaga ou decorativa. Mas estas entidades não pedem adoração; exigem responsabilidade. A sua escuridão é o húmus e o composto de onde germina a recusa da pureza, da colonização simbólica e da domesticação das forças selvagens. Ela não é um mito para consolar inocentes, mas sim a ferocidade selvagem que revela os colapsos e as injustiças, as violações e os omnicídios. E se hoje ainda ecoa, mesmo que abafada ou convertida, é porque não desapareceu, mas aguarda que recordemos, com humildade e maturidade, como a escutar em diversidade e coletividade.

Ataegina ou as Virgens Negras não precisam de ser salvas, somos nós que precisamos de aprender a morrer com elas e a reaprender a viver em relação com a sua memória fértil e revolucionária.

 

Em Portugal, o estudo sobre Virgens Negras é considerado raro ou praticamente inexistente. No entanto, algumas imagens marianas e locais de culto foram identificados nos estudos disponíveis como possíveis Virgens Negras (ou santuários de Virgens Negras) devido às suas lendas, atributos e ligações históricas e simbólicas. As possíveis Virgens Negras e locais de culto em Portugal, são:

Nossa Senhora da Nazaré (Nazaré) – Explicitamente nomeada como uma possível Virgem Negra Portuguesa.

A imagem está ligada a uma lenda que se enquadra nos atributos das Virgens Negras: a estátua tem uma cor morena (cor trigueira) e é uma Virgem de Majestade sentada numa pequena cadeira. Cumpre a maioria dos critérios associados a este fenómeno: a lenda afirma a sua origem oriental (trazida por um monge grego, Siriaco), foi encontrada acidentalmente (por D. Fuas Roupinho), é de tamanho e postura semelhantes aos arquetípicos, e o local é um centro de peregrinações e milagres (relacionados com navegantes e guerreiros). A imagem primitiva estava inicialmente no local chamado Pederneira (pedra negra). A igreja onde o culto se enraizou pertenceu à Ordem de S. Bento.

Capela de Nossa Senhora de Guadalupe (Raposeira, Algarve) – Ermida (também conhecida tradicionalmente como Aguadelupe) é um dos possíveis santuários de Virgens Negras Portuguesas.

A devoção à Virgem Negra é associada à capela devido à cor negra da imagem (que a liga a cultos de fertilidade). A capela foi construída provavelmente no século XV, , e está ligada ao resgate de cativos (prisioneiros) dos povos islâmicos. A lenda da Virgem de Guadalupe (cuja devoção foi introduzida em Portugal após a Batalha do Salado em 1340) descreve a imagem com tez negra, tendo sido enterrada perto de Cáceres durante a invasão muçulmana (em 711) e redescoberta por um pastor em 1326.

Mosteiro de Santa Maria de Cárquere (Lamego) – um possível santuário de Virgem Negra.

Vários fatores do local enquadram-se nas características das Virgens Negras: a imagem foi encontrada, a lenda a liga ao Oriente (trazida pelo último rei dos Godos, D. Rodrigo), é um local de peregrinações e faz parte de um Caminho de Santiago. A existência de uma imagem posterior no local, chamada Nossa Senhora-a-Branca, sugere a oposição a uma Virgem Negra primitiva que ali deveria ter existido. O local, que foi um Castro lusitano, estaria ligado a antigos cultos de fertilidade (mães grávidas ingeriam pó de calcário raspado da imagem para aumentar o leite).

Guimarães (Nossa Senhora da Oliveira) – um possível santuário.

A tradição e registos antigos sugerem que a primitiva imagem da Senhora da Oliveira (entretanto desaparecida) se situava num templo dedicado a deusa Ceres. O culto de Ceres, juntamente com o da deusa egípcia Ísis, era por vezes representado com a face negra. A localização e a lenda de Guimarães cumprem critérios como a existência de um elemento oriental (S. Tiago), a sepultura da imagem e a sua identificação como um local de peregrinação e milagres. Uma Virgem de Majestade sentada numa cátedra, encontrada em Guimarães, é considerada por um autor como uma antiga Virgem Negra danificada pelo tempo e pelos homens.

Baságueda (Beira Baixa) – referida como um possível santuário.

A lenda de Nossa Senhora do Bom Sucesso, que ali apareceu no interior de um sobreiro, leva a suspeitar da existência de um antigo culto de fertilidade (em vez de um culto de vitória militar). Os romeiros ainda hoje cantam que a Virgem é “Pequenina e moreninha”.

Haverá outros locais em Portugal com possíveis santuários arcaicos de Virgens Negras, mas com menos detalhes sobre as imagens: Ortiga (Vila Nova de Ourém); Constança; Nossa Senhora de Ribamar (Mafra).

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    • SOFIA BATALHA. The Sanctuary — Essays on Eco-Mythology (ou O Santuário: Ensaios de Eco-Mitologia). English Edition: 2024.
    • SOFIA BATALHA. Rezos do Vento e do Barro. Edições Corpo-Lugar.
    • SOFIA BATALHA. Contos da Serpente e da Lua.
    • SOFIA BATALHA. Pequeno livro da Imanência.

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