Referências na Imprensa
Centro Nacional de Cultura – E-Cultura
Um enorme agradecimento ao Samuel F. Pimenta pela elaboração do Press Release.
Podem encontrar o trabalho dele aqui: https://samuelfpimenta.com/
Temas abordados no livro:
Mitos da psique moderna, resgate de antigas formas de parentesco e diálogo.
Prefácio — O Verbo e o Afecto ao Mais-Que-Humano
Encruzilhada — Escolher o Caminho Errado
O Santuário — História
Espelhos — Armadilhas da Modernidade
Cega — Visões de Fogo
Surda — Inspirações do Vento
Muda — Vozes da Água
Metamorfose — Acolher e Participar no Diálogo
O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia
👉 Lançamento – uma conversa entre Ana Alpande e Sofia Batalha.
Não existem muitos livros que nos convidem a adentrar a metafísica do mais-que-humano que nos habita, imaginando as possibilidades da presença radical no corpo das coisas, aquilo que somos dentro, mas que também nos tece desde fora, num constante gerúndio — movimento entrópico (vir-a-ser) e ao mesmo tempo sintrópico (sendo). Agradeço a singularidade desta experiência.
Encontrei nestas páginas o elixir da velha, que abre a visão aos mistérios da vida e do território, relembrando, apesar dos séculos de esquecimento, que somos teia viva: relacional, orgânica, química, mítica e biológica. Confesso que a minha alma tem sede destas leituras disruptoras, que estimulam os circuitos neurais a viagens mais inclusivas e cumpridoras das várias inteligências que temos, tantas delas preciosamente mais-que-humanas.
Nesta coleção de eco-mitologias portuguesas revividas, Sofia convida-nos, a nós modernos, a reconsiderar a nossa relação com a paisagem viva. O convite é um gesto profundo de recuperação da alma, pois as ideologias de negação subjacentes à modernidade não dão crédito a tais histórias; não há visão, afeto ou possibilidade de participação com o mundo não humano ou com as dimensões espirituais que unem todos os mundos. As nossas almas anseiam por percorrer conscientemente as intrincadas teias de relações intersubjectivas que tecem a coerência a partir do caos, enquanto à nossa volta lateja uma ânsia mútua de atenção e vivacidade. Estas histórias estão enraizadas aqui. Paisagens históricas vivas e cheias de significado convidam a formas participativas de viver no e com o mundo que são tão antigas como nós. Através da manutenção de uma tradição oral vibrante em parceria com o Lugar, os aborígenes australianos mantiveram vivas histórias que remontam a dezenas de milhares de anos, enquanto os modernos globais procuraram rejeitar essas tradições como ultrapassadas e primitivas. Privar a renovação cultural de raízes históricas profundas torna o passado irrelevante para a mente moderna; perder a relevância da continuidade coloca os modernos à deriva num oceano de falta de sentido. Renunciar à integridade abre buracos no tecido da existência que está agora a desfazer-se à sua volta.
Como uma dádiva, uma oferta e um convite, as histórias aqui reunidas tornam-se um santuário sagrado, um lugar para alterar e recuperar das formas modernas de pensar e percecionar. Ao chamar a atenção para aspectos reprimidos e negligenciados da realidade, muito especialmente aqueles que existem para além dos nossos enquadramentos temporais criados pelo homem, estas histórias também alimentam aspectos perdidos e negados de nós próprios, levantando-os das sombras. Revigorar a vivacidade da terra também restaura a sua agência, dando ao Lugar o poder de voltar a ser um participante ativo e contador de histórias. As histórias desta coleção são o resultado de esforços emaranhados para reavivar a vivacidade do mundo na mente europeia moderna. Recortes de símbolos e sentimentos dos mitos partilhados do nosso passado infundem a consciência da natureza cíclica do tempo. Talvez inesperadamente, aqui podemos encontrar esperança, pois se o que passou pode voltar a passar, tudo pode ser renovado. Restos e fragmentos, aromas e sensações surgem continuamente, reaparecendo para se relacionarem connosco uma vez mais. Que os nossos corações, corpos e almas estejam abertos para receber, convidando a entrar o que foi banido há demasiado tempo, tudo o que anseia por viver e respirar novamente.
“Quando é que nos esquecemos de que tudo na Terra está entrelaçado, dos rios à comida que comemos, das montanhas às casas que erguemos, do ar à água que bebemos, da floresta à horta que plantamos, do lobo ao ovo na capoeira, da abelha aos frutos na mercearia, da bactéria à chuva que rega a terra, da paisagem à forma como imaginamos, do movimento dos astros à forma como rezamos? Tudo, absolutamente tudo é interdependente neste planeta. Por isso as culturas originárias, vulgo indígenas, sacralizaram a vida, porque sabem que sem deuses não há pedras, sem pedras não há florestas, sem florestas não há chuva, sem chuva não há alimento, sem alimento não há comunidades humanas e não humanas, sem comunidades não há Terra. É uma teia. E se se rompe um fio, rompe-se a estrutura. Mas nós, que criamos, que nos revoltamos, que choramos, que sonhamos, que oramos, que fazemos conjuros, que curamos, que cultivamos, que lembramos… Nós podemos, quais aranhas, tecer novos fios para compor de novo a teia. E assim relembrar que o Santuário somos Nós. Não eu nem tu, perdidos no delírio individualista da pós-modernidade. Mas Nós-húmus, Nós-placas-tectónicas, Nós-humanos, Nós-ventos, Nós-líquenes, Nós-toupeiras, Nós-larvas, Nós-florestas, Nós-peixes, Nós-abissais, Nós-água, Nós-todos, Nós-Terra. Cada milímetro deste chão, cada poro, cada átomo. O Santuário somos Nós.”
É este texto uma brevíssima reflexão deste livro escrito pela Sofia Batalha, “O Santuário”. Um livro sobre descolonização, trauma, ecologia, eco-mitologia, eco-psicologia e tantas outras coisas sem nome, que reflecte sobre o nosso tempo, em que o abuso, a violência e a cultura do belicismo e da morte dominam. A partir de personagens e lugares da mitologia e do folclore português, Sofia Batalha traça um percurso iniciático por escrito para devolver-nos a consciência de que precisamos do pensamento subjectivo, mitológico e onírico para resistir e, acima de tudo, relembrar quem somos e para onde queremos ir. Porque há esperança.
Já o fiz noutras ocasiões e gostaria de o reforçar: o trabalho que a Sofia Batalha desenvolve é das coisas mais valiosas com que me cruzei nos últimos anos, partindo do que há de mais ancestral na cultura portuguesa, colocando-o em diálogo com outros pensadores e pensadoras internacionais e dando pistas de como criarmos alternativas ao sistema necro-capitalista que se impôs sobre nós. Para mim, é das pensadoras portuguesas fundamentais deste tempo em que vivemos, pela coragem das perguntas que faz e pela interseccionalidade com que aborda todas as questões que levanta. Mas deixo o aviso: se vão à procura do pensamento racional cartesiano – que apesar de ter o seu lugar, se tornou tão dominante que nos sufoca -, não é isso que vão encontrar. A proposta da Sofia é outra. E ela faz jus ao nome que tem.
Comecei a ler este livro há meses. E só o terminei agora. Porque o fui saboreando, voltando para trás, re-lendo. Fui fazendo pausas para deixar sedimentar os convites, as evocações e os sonhos que surgiram depois de o ler.
É um livro tanto mais importante e urgente quanto menos imediato de entender, porque entender não é o verbo adequado. Implica o esforço de entrar num desfoque mental onde a lucidez e a verdadeira vista surgem. É uma exploração de significados estratificados no tempo, uma arqueologia dos mitos que evocam o tempo em que a humanidade sabia ser parte integrante do mundo natural, dos animais, das plantas, das pedras, dos agentes atmosféricos, das estações, dos ciclos da lua e de tudo o que vive e existe.
É um chamado ao regresso à Casa, ao sentido de pertença e união, pela desconstrução da hipertrofia mental que nos deixa isolados, impotentes mas destruidores.
Obrigada Sofia!
O Santuário oferece-nos uma viagem maravilhosa num tempo profundo e não linear através dos mitos, contos, histórias e forças elementares que moldaram as paisagens ibéricas. Meticulosamente investigado e primorosamente escrito, é uma leitura simultaneamente reconfortante e inquietante que transformará para sempre a nossa perceção de quem somos e onde estamos enraizados enquanto comunidade multiespécie.
Um livro que me fez viajar nas escolhas das encruzilhadas da vida, visitando os meus santuários próprios, internos, que me mostra ao longo dos caminhos possíveis várias inspirações, tomadas de consciência, aqueles momentos “há há” do cair da ficha de algo que estava mesmo “debaixo da língua”. É transformador e causa metamorfoses de vária ordem a cada leitura dentro dos círculos que vai descrevendo ao longo dos ciclos.
Neste livro, a compreensão histórica e contextual é apenas uma das chaves para desvendar os territórios e os terrenos das paisagens corpo-memória de Portugal; o acesso requer a renúncia ao controlo para desenvolver a porosidade dos modos de conhecimento exilados. Uma pesquisa-oração ousada, labiríntica e mitopoética, enraizada localmente e enredada em todo o lado.
O Santuário poderia ter muitos nomes. A Sofia chama-lhe, carinhosamente, o livro-amuleto. Mas o meu coração diz-me que se assemelha mais a um livro-bussola. Pode também ser um livro-astrolábio, um livro-mapa ou um livro-binóculo. Em todas estas designações reside essa característica fundamental de através dele podermos ver, intuir e mesmo percorrer um caminho. Um caminho que se faz através de um rasgar do tecido ocidental, o nosso modo de pensar e agir sobre o mundo que, insistentemente, queremos tornar hegemónico. No capítulo dos Espelhos vemos refletidas todas essas crenças que se cristalizaram em leis e se tornaram grilhões. Séculos de narrativas individuais e coletivas transformaram o ocidente neste território árido, silencioso e mudo.
Não é sem dor que se lê o Santuário, não encontramos nele o Jardim do Éden. Faz lembrar um pouco os filósofos do existencialismo absurdo, onde a vida desemboca no abismo, não nos restando mais nada a não ser chorar. No Santuário vemos o absurdo da existência neste território desértico onde caminhamos silenciosos, sós e obedientes.
Mas, através da escrita da Sofia sentimos uma mão que nos toca no escuro e nos guia, enquanto tropeçamos e desejamos que a viagem termine. Aprendi que há uma relação Sofia-livro-Dulcineia, onde através do sacrifício dessa árvore que o compõe posso entender a sua dádiva.
A voz da Sofia derramada nestas páginas é tão bela quanto útil e espero que muitas pessoas a ouçam e entre os tropeções e calor da viagem cheguem finalmente a casa.
Sofia Batallha escreve com uma dor tão urgente, furiosa e terna pelo estado do planeta, compostando e transmutando velhas cartografias onde os monstros híbridos fazem sentido. A autora reelabora o mito para traçar caminhos metabólicos sensuais de solidariedade na incerteza da nossa situação. A sua solidariedade sensorial com as convulsões da Terra e a metacrise das capacidades humanas é um contributo precioso para o Santuário de narrativas emergentes que podem oferecer sabedoria e culturas alargadas às gerações futuras no fim do mundo tal como o conhecemos. Um santuário de parentesco transcontextual – em sintonia fina com a pluralidade animada da narração de histórias.
Chama-lhe pesquisa-oração, uma forma de devoção animista imaginativa ao outro, uma sensação com a realidade contextual de um ecossistema ferido onde a intimidade vulnerável nas ruínas pode abrir portais para um caminho de regresso a casa. Oferecendo aos leitores a oportunidade de considerarem as camadas das suas próprias histórias e de as tecerem, sentindo o potencial plural e aberto do mito. Isto acontece quando olhamos/ouvimos/sentimos nos limites da perceção cognitiva, olhando para as histórias com o canto dos olhos, renovando um processo coletivo incorporado de criação de sentido para além do senso comum, de formas ainda por ver, num mundo onde a segurança que a modernidade permite é enquadrada pela desconexão.
Se a demo-cracia é estruturada pelo “demos” – o poder de um território dominante sobre outros antes de a palavra grega passar a significar “povo” – Sofia convida-nos a um etho-acumen, alargando a nossa capacidade de sentir e sintonizar com a pluralidade das ecologias vivas. Ethos aponta para as formas corporais específicas que ligam diferentes culturas e sensibilidades à vida. Ethos é a raiz da palavra etologia (comportamento dos seres humanos ou não-humanos) e o mistério de como a ética exprime uma aspiração para além de determinados quadros de moralidade.
A forma como o mito incorpora o ethos é uma fonte constante de renovação e admiração. A contribuição apaixonada de Sofia Batalha para sintonizar esta pequena sensibilidade pós-ativista é, no entanto, um esporo desesperadamente necessário para renovar o bom solo nos nossos Wastelands. Para o fazer, lê a paisagem da sua própria FinisTerrae, recuperando a ligação enterrada entre o mito e a terra de uma forma que nos faz lembrar o chamado tempo de sonho errante dos clãs das Primeiras Nações na Austrália. O trabalho de Batalha não é uma tentativa romântica de idealizar o mito do nosso passado enterrado e não redimido. Antes nutre o solo necessário do momento presente para encontrar, lamentar e compostar sombras complexas exiladas e heranças diaspóricas. Partilhando aprendizagens e desaprendizagens, com admiração e sintonia radical, ela também desenha traços delicados em direção ao Santuário para os monstros esperançosos de hoje que procuram um caminho para casa
Sofia Batalha lembra-nos, da forma mais visceral, que ser humano é um ato participativo contínuo de pensar-sentir no lugar.
As palavras de Sofia fluem com a facilidade de um riacho borbulhante e tornam agradável o passeio ao longo dos muitos pontos de vista e perspectivas que oferece nesta viagem ao tecido da psique ibérica ocidental; dou por mim a tornar-me parte animal, parte deus, parte rocha, à medida que nos movemos através destes territórios psicofísicos.
Uma verdadeira celebração às formas animistas de saber.
Terminei ontem, finalmente, a leitura do seu livro, muito emocionado e impactado. Sobre o livro, é para ler e reler… Que pesquisa incrível, que reflexões contundentes, quão importante esse “pós-ativismo” que pode provocar trincas no grande sistema que ameaça a vida…
Sofia oferece generosamente uma cartografia maravilhosamente ilustrada. O Santuário acolhe todos os que procuram honrar a reciprocidade ecológica. É um lugar onde a escuta profunda da beleza eco-mitológica das nossas paisagens não nega a violência da sua perda às nossas mãos. Sofia oferece generosamente uma cartografia, não para transcender, mas para se inscrever nas raízes profundas das relações ecológicas e mitológicas que alimentam formas de vida que se recusam a matar, mesmo a partir de contextos modernos que nos arrastam para a cumplicidade.
Quando se entra no santuário, é-se convidado a entrar no desconforto de desafiar a certeza. A recompensa é uma re-ligação mais profunda, visceral, às formas animistas de viver em responsabilidade amorosa
Conheci O Santuário na sua língua nativa, o português, e tal como naquela primeira experiência, sinto que estou prestes a ouvir uma cena musical antiga, descobrindo, muito em breve, que essas canções-narrativas antigas estavam realmente lá o tempo todo. Eu só não sabia como ouvir. Não sabia que era capaz de o fazer. Mas, acima de tudo, eu não estava ciente delas, de todo.
Este é o principal sentimento e o principal pensamento ao pensar sobre este livro-poema-composição. Como investigadora que sou, fico encantada com a dedicação com que Sofia vai procurando, estudando, escavando, para trás e para a frente, uma coreografia. O tempo que dá a cada história para emergir, a cada lugar e a todo o tipo de entidades para reverberar. A sua audácia em (re)ligar pesquisa e oração.
O Santuário é uma experiência sobre si próprio. Uma viagem eu-tu. Eu não sabia das minhas próprias inter-relações, do que já estava ali diante de mim. E apesar de ter tido o privilégio (eu) de ter crescido num lugar pequeno, onde as raízes, humanas e outras, ainda se manifestavam, quando saí daqui e vivi num ambiente urbano, deixei, de alguma forma, de me relacionar com as histórias, as cartografias, o imaginário, a sabedoria dos lugares onde vivo agora.
O Santuário, através da Sofia, como se fosse uma Alice que nos convida a saltar e a descobrir os antros escondidos à vista de todos (para quem sabe ver-ouvir-perceber-perguntar), é um objeto vivo. Um portal para a imensidão da existência e do todo que, afinal, é também a história de cada um de nós que por acaso nasceu neste território. Imagino que criaturas poderíamos ser, se estas histórias fizessem parte das histórias que contamos àqueles que ainda estão nos primeiros passos do devir, cada vez mais privados de contexto e identidade. O Santuário, é um livro sobre pertença. Juntos.
Vivemos numa era de perda incomensurável, a tantos níveis; uma era em que a Vida está profundamente ameaçada na sua diversidade. Todos os que habitam esta Terra-Casa, todos os seres, em todos os reinos, nas suas miríades de formas, estão subitamente tão frágeis, ameaçados pela doença que tem vindo a infetar os seres humanos, cegando-os com arrogância e ignorância. Os contornos desta era são míticos e as suas consequências são épicas. Houve certamente outras eras “finais”. As grandes histórias de todo o planeta falam muitas vezes desses tempos, e os nossos ossos reconhecem-nos. Algures, escondidas nas profundezas do nosso ser, veladas no tecido invisível da Teia Viva, algumas pistas permitem-nos desvendá-las. Tal como as grandes montanhas e os imensos rios que se estendem pelos territórios, abrigando universos vivos em cada floresta, cada poça, cada árvore, as histórias revelam-nos. Neste livro, Sofia desperta-nos para este mistério que nos tem passado despercebido, mas que nos é tão familiar. Uma história nunca é apenas uma história, e uma paisagem não é uma paisagem de todo. Aprender com a Sofia é descer à terra e ganhar outra perspetiva; olhar para dentro e encontrar o cosmos; desdobrar-se, expandir-se, espalhar-se e entregar-se à Vida.
E se os humanos não fossem os únicos seres sencientes neste planeta? E se as plantas, os animais e toda a paisagem fossem “pessoas”? Como é que a nossa relação com eles mudaria? O livro de Sofia Batalha é uma oferta generosa e preciosa para encontrar uma resposta a estas questões nas histórias antigas escondidas nas fendas da alma ibérica. Rico em contos eco-mitológicos, descobertas etimológicas surpreendentes, percepções da vida real que fazem a ponte entre o antigo e o futurista, este livro é um tesouro para quem deseja ir além dos desertos materialistas da cultura moderna para descobrir e recuperar uma visão do mundo e um comportamento muito mais húmidos e férteis. Escrito num estilo instigante, onde a forma é tão relevante quanto o conteúdo e os gráficos são insinuações para os nossos modos não racionais de compreensão, não há uma página que passe sem ser um banquete para a alma!
O Santuário, de Sofia Batalha: Ensaios de Eco-mitologia é um conjunto de chaves composto por palavras e ideias luminosas. A prosa é poesia; a poesia é filosofia; a investigação é oração (e vice-versa) – e todo o “livro-amuleto” é um encantamento que nos convida a recordar o que perdemos e o que ainda podemos encontrar quando suavizamos as nossas identidades na terra, na água e no céu. O texto é enriquecido com belas ilustrações a preto e branco: algumas plantas, mas também criaturas requintadas que se espreguiçam e se divertem nas páginas. A autora apresenta partes da paisagem ibérica, mitos e seres que podem não ser familiares a muitos leitores, mas que não só nos encantam com o seu exotismo como nos convidam a conhecer mais de perto animais vivos e extintos nas nossas terras, tradições de sabedoria ainda vivas, sobretudo entre as mulheres, e outras que são apenas ecos ténues, tão subtis como o xaile estrelado que Bona Dea envolve quem vê verdadeiramente. Batalha recorda-nos que a nossa psique é fractal e que a imanência se encontra nos verbos – que desdobram incessantemente as suas acções numa profusão complexa – e convida-nos a regressar a um mundo que sempre foi nosso e no qual podemos participar na dança.
Sofia embala-nos numa série de leituras polifónico-poéticas, embebidas na magia dinâmica do tecido onde a vida se revela. Aborda o mistério oculto e perene dos elementos, das forças e ciclos da Natureza, das energias dos territórios e das idiossincrasias dos seres não humanos, articulando-os com as percepções da autora, em plena simbiose com os saberes ancestrais. Uma obra de matriz eco-mitológica e de matiz poético, que abraça a sacralidade da vida na Terra e o Santuário que nos clama.
Recuperar o nosso eco-self é o trabalho mais importante do nosso tempo, e libertarmo-nos da psique moderna dissociada é essencial. Com a sua prosa brilhante, a sua erudição e a sua mitopoética, Sofia Batalha tem sido um dos nossos principais guias neste processo, e a tão esperada tradução inglesa de The Sanctuary – Essays on Eco-Mythology excede em muito todas as expectativas. Este volume é uma tecelagem superlativa de mitologia, psicologia e ecologia – um conjunto de portais, princípios, metáforas, sonhos, símbolos e contos antigos – dentro de um “Livro de Amuletos” maravilhosamente concebido e articulado. Sofia descreve a amnésia e a disfunção da colonialidade em grande pormenor e, ao colocar em primeiro plano as histórias e paisagens sagradas de Portugal, descobre os “frágeis fragmentos remanescentes de uma psique europeia responsável e recíproca”. A terra está viva, os elementais e os espíritos estão a falar, a terra está repleta de histórias, os modos míticos continuam a ser a nossa principal forma de compreensão e o diálogo somático com o mundo não-humano é possível.
Em síntese com formas antigas de conhecimento e metodologias indígenas em todo o mundo, Sofia introduz modalidades novas/antigas para viver, tais como a “fenda da psykhē mítica”, a “emergência do corpo presente” e o “portal da terra sagrada”. Sofia pergunta se ousamos imaginar-nos novamente como interdependentes, e narrativas alternativas significariam recordar e recuperar as partes animistas de nós próprios, cultivar uma profunda pertença ao lugar, responder aos anseios da nossa alma e co-criar com mitos vivos para manter o mistério vivo. A “Pesquisa-Oração” evoca a imaginação não linear, é subjectiva e multidirecional, e está aberta a encontros com forças e seres vivos na rede interligada através da adoração, reverência, êxtase, cerimónia e comunhão. No espaço sagrado e luminoso criado por O Santuário – Ensaios de Eco-Mitologia, a sabedoria de Sofia permite-nos fazer a peregrinação ao “lado errado da encruzilhada”, abraçar uma cosmologia ancestral, incorporar os ciclos sazonais do tempo, encontrar os nossos próprios espíritos e mitologias locais, deixar oferendas e partilhar os contos antigos. Este é o trabalho de reavivar a alma ecológica selvagem, e O Santuário reafirma as nossas instruções originais. Ao recuperarmos a ligação sagrada negada pela colonialidade, nas palavras da própria Sofia, “que a alma primordial, o elixir cósmico arcaico e o fluxo procriador, líquido e sinuoso, nos reclamem de volta.”
O Santuário
Ensaios sobre Eco-Mitologia
Prefácio de Ana Alpande
Edições Mahatma
A Eco-Mitologia fala do entrelaçamento essencial entre Ecologia e Mitologia.
A Ecologia como os conjuntos interdependentes, simbióticos e dinâmicos dos múltiplos sistemas vivos que nos dão vida — das paisagens aos animais, passando pela meteorologia e os ciclos. A Mitologia como as linhas matriz — codificações oníricas, simbólicas e metafóricas — das histórias ancoradas pelo corpo, através do mais-que-humano e dos lugares.
O território da Eco-Mitologia é sagrado, tão antigo quanto novo e, estes ensaios, pretendem questionar quem somos, para que voltemos inteiros, íntegros, híbridos e diversos. Abrimo-nos a um colo quente e imanente pleno de histórias e sussurros, tocando noutro paradigma de embalo primevo de sustento e nutrição, em diálogo com a sombra e a luz.
Estes vários ensaios são tecidos através de um paradigma e perspectiva eco-mitológica, num convite participativo a uma busca fractal e caleidoscópica em simbiose com o mais que humano, resgatando e recriando ecossistemas poli-vocais de identidade e percepção. A lente eco-mitológica é intimista, animista, complexa e sistémica, onde seres sagrados, antigos e multi-vocais são o próprio sistema ecológico, vivendo e respirando pelos ciclos da terra e da água.
A urgente e lenta tarefa de observar e conectar à mitologia do lugar não é um acto heróico, romântico ou nostálgico. Não tem tempo ou prescrição, sendo uma faina ritual que exige esforço e dedicação, em responsabilidade e devoção. Este relembrar não serve para encontrar essências, purezas, unidade e muito menos “missões nacionais.”
É um labor que expõe os padrões que geram as mono-narrativas-lineares culturais, as transcendentes e envolvidas em excepcionalismo heróico. Por contraste, este é um percurso em humildade e rendição, uma passagem orgânica de membranas e camadas de percepção, uma peregrinação comunitária em profundidade e ternura. Uma humilde viagem à intimidade de quem somos, onde não somos o centro, onde apenas estamos em relação e pertença.
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