Celebração do lançamento do livro “O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia”

Prefácio de Ana Alpande

Edições Mahatma

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Silenciar e Esquecer

Quando nos deixamos de mover em conjunto com a Terra

 

No livro de Contos Tradicionais do Povo Português de Teófilo Braga há duas lendas cristãs, curtas, mas muito significativas. São duas pequenas histórias populares que nos dão conta de onde estamos e de quem somos atualmente. Resumem a nossa relação com as coisas. Contam assim:

 

A Lenda da Terra

No princípio do mundo, quando o homem cavava a terra, a terra abria bocas e gritava. O homem queixou-se ao Senhor, e o Senhor disse então à terra:

– Cala-te, que tudo criarás e tudo comerás.

 

Lenda da Lenha

Quando se queimava a lenha, gritava; foi por isso que o Senhor lhe tirou a fala para não comover a gente.

Os Gritos

Quando li estes contos pela primeira vez o que me tocou foram os gritos e o seu silenciamento. Os gritos dos “outros”, os vocabulários aparentemente bizarros e grotescos, a comunicação mais que humana, a visceralidade dos brados da terra e da lenha, o alarido e protesto, o rugido antigo de dor e perplexidade. E de como realmente nos comove e afecta. Espantosamente de como conseguimos ouvir.

As culturas contemporâneas nativas e contextuais recordam-nos uma e outra vez que tudo está vivo, senciente e em fluxo vivo de consciência. Estes povos recordam-nos que, o que nos traz aqui enquanto humanos, não é o controle hierarquicamente superior, mas a humildade de fazer parte de um intrincado sistema vivo, guardando a Vida. Estas culturas de reciprocidade relembram-nos da responsabilidade de uma das nossas capacidades intrínsecas: a relação e comunicação com tudo o que existe, das pedras, à lenha, passando pelos rios, árvores, pássaros e montanhas. Não uma relação redutoramente verbal (ou sequer antropocêntrica) é claro, mas sensorial, imaginativa, onírica, simbólica, mítica e sempre misteriosa.

O Silenciar

O acto patriarcal do “Senhor” monoteísta de silenciar a Terra ou a lenha é um poderoso símbolo do corte violento desta relação primeva, do ouvir com o coração e do comover, mover visceralmente em conjunto, com o mais que humano, numa comoção de união sagrada. Da relação que nos mantém em conexão com o nosso nicho ecológico, em pertença visceral e profunda. É um movimento que resume o posicionamento da nossa cultura hoje em dia: um silenciamento e distanciamento hierárquico e patriarcal, onde a terra, lenha e natureza deixam de ter voz e passam a ser recurso inerte ao serviço exclusivo da humanidade. São sintomas desta brutal separação a profunda dessacralização da Natureza a favor de um deus “lá em cima”, a interrupção, esquecimento e mesmo o tornar ridículo este diálogo milenar que nos amparou como parte do território desde o início dos tempos.

Este é um silenciar, e consequente esquecimento, que nos deixa órfãos e solitários, pois deixamos de saber ouvir a riqueza que nos envolve, as histórias mais que humanas, os contos uivados, os risos cantados, os sussurros proféticos, os gritos emocionados ou os silêncios texturados.

Perdemos de vista a dignidade e responsabilidade da relação com o “mais que humano” na urgência de extrair e controlar, na ilusão que uma vida humana vale mais que todas as outras.

O Comover

No princípio do mundo ouvíamos com o coração, como nos relembram estas duas lendas. Os gritos da Terra e das Árvores faziam-nos comover e enterneciam a Alma. Sensibilizavam o corpo e emocionavam a mente. Relacionávamo-nos com estes diálogos e contávamos as suas memórias. Ao silenciar os seus bramidos e queixumes emudecemos também a sua companhia, as suas histórias, as suas alegrias, os seus imprescindíveis e ricos ensinamentos e as suas fundamentais inspirações, que nos guiaram durante milénios. Antes do grande silenciamento, pela ilusão de poder e excepcionalismo e a favor da objectividade e dos factos, fazíamos realmente parte. Ao emudecer estes diálogos primais esquecemo-nos dos rituais de reciprocidade e gratidão, abandonamos a responsabilidade do dar e receber em devoção, entorpecemos o coração e violentamos a Vida. Com estas vozes ocultas desaprendemos como ser guardiões da Vida.

O antídoto para este estrangulamento da Alma é permitir sermos afectados de novo, ter a coragem de nos deixarmos enternecer. Comover. Sentir. Ouvir. Permitir que o encantamento pela Vida nos recorde de quem somos. Que o afecto pela Vida nos volte a afectar, que nos relembre de sentir e ouvir os gritos silenciados neste território há pelo menos dois milénios. 

Ouvir de novo após dois mil anos de silêncio é tanto um acto de coragem como de loucura, uma responsabilidade e uma urgência, recordando a verdadeira reciprocidade e porosidade que é zelar pela Vida.

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