Pedra-Mapa

{um sonho-fronteira, uma liturgia do selvagem}

 

Tinha frio, pelo vento que uivava na paisagem desolada, em rajadas que empurravam e secavam o corpo. Talvez pela fome ou pela sede, insistia em afundar as mãos na cinza ainda quente que cobria o chão. De boca seca e garganta arranhada, respirava pó. Mas debaixo das cinzas e dos detritos algo continuava a cantar. No meio do negrume algo cintilava teimosamente, sussurros quase inaudíveis em línguas esquecidas.

De joelhos, as mãos cavam, esfolam, com restos e cacos que as arranham e plástico seco debaixo das unhas. Procuram. As mãos perguntam, tateiam, revolvem, cada vez mais fundo. As mãos encontram e são encontradas de volta. Abraçadas pelo chão fundo e húmido.

Desenterro uma pequena caixa de madeira de carvalho. Pesada e densa. Antiga. Fechada a quatro ferrolhos. Escuto a caixa, cheiro-a. Acaricio a sua madeira velha e estremeço. O corpo treme e agora não é de frio. Arde. Pulsa. Há uma recordação, uma reorientação, numa forma antiga e nova que se move entre as mãos, a caixa e o chão. Atravessa-me suavemente, sussurrando pelo vento e pelos antepassados, ecoa em rochas cobertas de musgo e pelo sono nebuloso.

Reparo que tenho as mãos feridas, sinto as marcas fundas e as cicatrizes doem. Sento-me com a dor e a caixa no colo. Envolta em pó e cinza, continua a cantar baixinho. Canto com ela, em murmúrios que se reconhecem. Assim, pelas histórias e memórias, a terra, os fungos, o vento e as estrelas destrancam os quatro ferrolhos ferrugentos. Chaves feitas de chão, micélio, brisa e brilho do fundo do cosmos. A chave do chão-raiz, a da rede-sustento, a da criação-inspiração e a da constelação-origem. A caixa range e abre-se, exalando um cheiro antigo, uma memória fugaz que se dissipa rapidamente.

Dentro, uma pedra, com três covinhas marcadas. Cabe na minha mão, mas sinto-a gigante e antiga. Sinto-lhe o pulso das eras. Respira suavemente na minha palma, talvez seja um mapa. Uma velha professora.

Respiramos profundamente em conjunto. Retornamos e remembramos. A cinza quente, a caixa agora aberta, o pó e a pedra, a terra, os fungos, o vento e as estrelas. Mas também o corpo cansado, os lábios gretados e as mãos feridas. Descansamos um pouco aqui. Desenterramos memórias, sonhos e testemunhos, destrancamos relações, gentilmente e sem pressa. Cânticos que surgem e logo se evaporam, como terra recém-revolvida, como gotas de chuva.

A pedra recorda-me de algo mais antigo que a resistência, mais antigo até que a dor, uma lealdade selvagem à Terra, que não presume salvar, possuir ou emendar. Estar-com, lembrar pela presença, testemunhar como um gesto de cuidar. Dar colo à pedra, não como observação passiva, mas num pacto de permanecer com o devir do mundo, mesmo quando arde, sangra e se dissolve. Testemunhar a Terra é enlear-nos pelo inter-ser.

Há muito tempo que a Pedra-Mapa me esperava dentro da caixa de carvalho enterrada.

Abriu-se pelas chaves feitas de chão, micélio, brisa e constelação. A Pedra sussurra ser roteiro de sonhos e convida-me a testemunhar, pede-me que encontre as três sementes para as três covinhas. Que as chame em orações-fronteira, que me abra à ecologia dos sonhos. Não para controlar, conquistar ou estudar, mas para metabolizar a escuta dos rios moribundos e do chão contaminado. Estes são os sonhos que falam antes das vozes. Estes são os protocolos do devir conjunto, da liturgia do selvagem.

Passo os dedos de pele fina pelas três covinhas da Pedra-Mapa e ouço-as dizer o meu nome. A Pedra deixa-se ler como arquivo de memória sensível, como registo e realinhamento. O seu peso é o da responsabilidade ancestral. Convida-me a semear o testemunho, a escrever o silêncio e o luto em conjunto numa presença inabalável ao lado de uma Terra em convulsão. As cinzas começam também a cantar.

Aprendo a ouvir novamente, talvez até deixar a terra testemunhar-me de volta. As sementes hão-de surgir a seu tempo.

… Deixo este sonho percorrer os meus ossos. Sussurro de volta às Pedras. Canto para o vento. Talvez as sementes também estejam à minha procura.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.