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Para Lá do Sapatinho de Cristal

{Vivências Secretas dos Sapatos nos Contos}

 

Quando pensamos num sapato dentro de um conto de fadas, viajamos quase de imediato para um salão de baile, onde um príncipe segura um delicado sapatinho de cristal. A imagem da Cinderela é, sem dúvida, um símbolo poderoso de transformação e identidade revelada através do calçado.

Contudo, para lá do brilho do cristal, os sapatos nos contos populares escondem significados muito mais profundos, complexos e, por vezes, surpreendentemente sombrios. Estes objetos do quotidiano não servem apenas para caminhar ou dançar; são objectos cerimoniais, que vinculam, castigam e revelam as sombras da psique eurocentrada. Neste artigo, exploraremos algumas dessas interpretações inesperadas, mergulhando na rica simbologia do folclore, com especial atenção à tradição portuguesa.

 

Os Sapatos como Símbolos

1. Mais do que Mobilidade: O Sapato como Vínculo

À primeira vista, os sapatos são para caminhar pelo mundo, para proteger as solas dos pés de pedras afiadas, para ajudar no equilíbrio em chão irregular e para manter os pés quentes. Nos contos, permitem que as heroínas caminhem em longas jornadas, fujam de perigos ou, como a Cinderela, dancem noite dentro. No entanto, os contos exploram uma dualidade fundamental: ao mesmo tempo que facilitam o movimento, os sapatos também “prendem os pés”.

Este prender não é meramente físico. Por metonímia, o sapato vincula a mulher que o usa a uma condição específica, seja ela um estado social, um encantamento ou um destino. O sapato torna-se, assim, um símbolo poderoso que tanto liberta como aprisiona. Este poder de vincular manifesta-se de formas surpreendentes, subvertendo a nossa expectativa eurocentrada que os sapatos levam sempre a um final feliz.

2. Vínculos Noturnos: O Sapato e o Estado de Solteira

Uma das interpretações mais contra-intuitivas dos sapatos está ligada ao estado de solteira. No conto “Os Sapatos Rotos de Dança”, doze princesas gastam os seus sapatos todas as noites em bailes secretos. Este ato de dançar até ao desgaste completo do calçado não é apenas um sinal de comemoração, mas um vínculo à sua vida de solteiras. Quem sabe com ecos dos ritos orgiásticos das Mênades de Dionísio, ou de outras sacerdotisas e mulheres selvagens em transe pela floresta dentro em noites de lua cheia.

Nos contos, enquanto a dança continua, as princesas permanecem nesse estado encantado, adiando a sua entrada na vida adulta matrimonial. Se este encantamento é uma bênção ou uma maldição permanece ambíguo; as jovens mulheres parecem desfrutar da sua liberdade noturna, mesmo que esta as mantenha num ciclo que adia a maturidade. Estas celebrações de “romper sapatos” pela sua intensidade podem ter sido mais tarde cobertas de uma camada patriarcal de virtudes femininas que silenciam a força extática da cerimónia no corpo. Nesta visão, as mulheres ficam presas ao encantamento da dança e do colectivo feminino, aparentemente como algo a evitar.

3. O Peso do Encantamento: Os Sapatos de Ferro

Contudo, esta liberdade aparente esconde uma faceta mais pesada, revelada por um detalhe crucial nas versões portuguesas do mesmo conto: as princesas não dançam em delicados sapatos de cetim, mas sim em pesados “sapatos de ferro”.

Este pormenor transforma por completo a natureza do encantamento. O ferro nos pés introduz um elemento de castigo, de fardo e de sofrimento. A dança deixa de ser um ato de alegria para se tornar uma provação, um vínculo negativo que, em algumas narrativas, estabelece uma ligação simbólica clara com a “perdição do inferno”. O sapato torna-se aqui um instrumento de tormento, não de celebração. Em muitos outros contos, as jovens noivas têm de calçar sapatos de ferro como provação para encontrar o noivo perdido, quando o sapato de ferro se desgasta, o encantamento desfaz-se. Muitas vezes após andar sete anos pelo mundo.

Encontramos a Idade do Ferro (c. de 1 200 a.C. a c. 1 000 d.C.) como referência das culturas locais e que nos pode abrir a novos contextos tanto de peregrinações cerimoniais como de castigo destes sapatos.

4. O Encaixe Perfeito: O Sapato como Metáfora da União Matrimonial

Em forte contraste com a ideia de aprisionamento, encontramos o simbolismo mais familiar: o do sapato como promessa de união. Na história da Cinderela, a busca pelo pé que encaixa perfeitamente no sapatinho perdido é mais do que a simples procura da identidade feminina. Este ato “prefigura o casamento de um par que se ajusta como ‘uma luva na mão’”.

O sapato, rico em simbologia contrastante, ajuda-nos a cultivar a sabedoria do paradoxo: perder o sapato inicia a busca pela união, enquanto gastá-lo num ciclo interminável reforça a separação. O encaixe perfeito é uma metáfora poderosa para a compatibilidade e a união, onde o sapato não vincula a um estado de isolamento, mas sim à promessa de uma comunhão.

5. Para Lá do Casamento: Sapatos, Ciclos e a Natureza Periódica da Mulher

A análise mais profunda, proposta pela investigadora Isabel Cardigos, transcende a simples oposição entre as solteiras e o casamento. Em vez de vermos os sapatos apenas como símbolos de um ou outro estado, podemos entendê-los de uma forma mais ritualística, como uma chave interpretativa para estes significados.

Nesta perspetiva, os sapatos representam a “alternância entre estados de disjunção e conjunção, regidos pela natureza periódica das mulheres”. O ciclo de usar, gastar e substituir sapatos espelha os próprios ciclos femininos, as fases de afastamento e de união que marcam a sua vida. O sapato deixa de ser um mero objeto para se tornar um símbolo dos ritmos profundos da existência feminina.

Este conceito ilumina os exemplos anteriores de forma extraordinária. Os bailes noturnos das princesas nos “Sapatos Rotos de Dança” podem ser vistos como um ritual de disjunção, uma separação periódica do mundo diurno e patriarcal. Por outro lado, a jornada da Cinderela, que culmina no encaixe perfeito do sapato, representa um movimento definitivo em direção à conjunçã, a união e o casamento. Assim, o sapato revela-se como o mediador simbólico destes ciclos fundamentais.

 

Um Olhar Eco-Mitológico Sobre Velhos Contos

A fertilização da análise do simbolismo dos sapatos com a perspetiva eco-mitológica transforma a “penosa procura” da heroína numa prática de relação, pertença e memória profunda, em contraste com a lógica moderna de conquista individual.

A ideia eco-mitológica do sapato como um elemento que ajuda a calcorrear o mundo e a guardar paisagens na memória funda de quem somos é reforçada pelo próprio paradoxo inerente ao sapato nos contos, conforme analisado por Isabel Cardigos: ele é uma “constrição que permite andar mais e mais depressa”.

Nos contos selecionados, esta constrição torna-se um símbolo corpóreo da jornada relacional e situada:

1. O Paradoxo Sapato/Viagem: Separação vs. Pertença

A análise dos sapatos distingue a sua função para protagonistas masculinos e femininos. Enquanto para os homens, o sapato pode ser um “instrumento que facilita o andar” (potencialmente alinhado com o progresso linear e o domínio do herói moderno que busca transcender o corpo), para a personagem feminina, o sapato está ligado a um estado de encantamento e disjunção marital.

A heroína, ao contrário do herói que busca a glória, empreende uma jornada que exige esforço e incorporação:

  • A constrição como Corpo-Lugar: O uso de sapatos de ferro, frequentemente mencionados na “penosa procura” da heroína no conto-tipo O Noivo Animal (AT 425A), representa a aderência à matéria e ao solo. A heroína é forçada a mover-se lentamente e com dor, numa aceitação do sofrimento vista como um caminho para a libertação paradoxal. Aqui reside um símbolo fundo do sacrifício feminino do cuidar agrilhoado e diminuído pelo patriarcado.
  • A Erosão como Memória: Os sapatos estragados, como os rompidos pela princesa que dança debaixo de terra em Os Sapatos Estragados (ATU 306), evidenciam um caminho lento, cíclico e de erosão. O desgaste é a prova visível (o troféu) do trabalho relacional e da passagem entre mundos. Esta travessia é uma forma de “escuta com a Terra”, onde o corpo e o calçado registam a memória profunda da paisagem.

2. Exemplos nos Contos Selecionados

A Cara de Boi (AT 425A)

Embora não se centre diretamente no sapato, este conto estabelece a ontologia do corpo e da matéria que o sapato de ferro virá a simbolizar nas variantes da procura:

  • O príncipe mais novo, ao procurar a “mulher mais formosa”, rejeita as escolhas materiais dos irmãos (filhas de padeira e ferreiro, ligadas à “agricultura (o pão) e indústria (o ferro)”). A sua jornada leva-o à “cara de boi”, que simboliza o “choque do espírito com a matéria” e a “tristeza e a vergonha de ser corpo”.
  • A aceitação desta constrição e fealdade da carne, por parte do herói, é o que permite a regeneração do reino. A fertilização eco-mitológica aqui reside em ver o sapato de ferro (ou a “cara de boi” como constrição) como o fardo material que o herói/heroína deve abraçar para cumprir o seu destino, ancorando-se no corpo-lugar.

Os Sapatos Estragados (ATU 306)

Neste conto, a jornada é literalmente um “calcorrear o mundo” subterrâneo, onde as princesas gastam “três / sete pares de sapatos / de ferro / por noite”.

  • A travessia noturna e subterrânea (a descida aos infernos) abre-se à imersão no inconsciente (selvagem) nos ciclos (tempo espiralado). Este é o lugar do mistério e do encantamento.
  • Os sapatos estragados não são um defeito, mas sim a prova do ritual e do conhecimento adquirido no mundo encantado. Se o sapato for visto como uma “tecnologia simbólica da modernidade” que tenta dominar, o ato de o estragar representa a falha da dominação em face da “agência” do não-humano (o mundo subterrâneo e os seres com quem dançam). A prova de que a heroína “se deixou atravessar” e foi “alterada” pela relação é o sapato rompido.

A Noiva do Corvo (AT 425X)

A heroína, que empreende a procura do marido (também usando sapatos de ferro em variantes de AT 425), deve cumprir uma série de tarefas, incluindo lavar um fato de penas.

  • A tarefa final (lavar o fato de penas, matar o velho e libertar os pássaros) é um ato de restauração ecológica e relacional. O sapato de ferro representa a durabilidade e fidelidade necessárias para a longa caminhada que culmina no desencantamento e conjunção marital.
  • O sapato, ao percorrer as paisagens (reais ou míticas), transforma-se no “fio” que tece a história relacional que irá descentralizar o ego-herói e permitir que a verdade emerja, ligando o destino da heroína ao destino dos seres não-humanos (os pássaros libertados, num fluxo sazonal re-estabelecido).

A fertilização eco-mitológica sugere que a dificuldade e o material pesado dos sapatos nas jornadas femininas não são meros obstáculos, mas sim a prática incorporada e sazonal da escuta e da paciência que a pertença ao corpo-lugar exige, contrastando com o triunfo fácil da mentalidade da conquista. A “imobilidade final” da heroína, a libertação, é o descanso merecido por quem aceitou ser composta de mundo.

 

Referências

  • Cardigos, Isabel. “A Viagem Iniciática em Seis Contos Populares Portugueses”.
  • Cardigos, Isabel. “Da Fase à Face: Transmutações do Tempo nos Contos Femininos”. Estudos de Literatura Oral, 2 (1996), pp. 67-78.
  • Cardigos, Isabel. In and Out of Enchantment: Blood Symbolism and Gender in Portuguese Fairytales. Helsinki: Academia Scientiarum Fennica, 1996.
  • Silva, Francisco Vaz da. “Portuguese Folktales: A Missing Piece in the European Puzzle”.
  • A Noiva da Noite

  • Cartografia do livro “O Santuário” – Parte 1

  • Calendários de Penas e Mantos Roubados

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