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Da Dominação ao Cuidado
Pluriverso de Resistências
Ao longo de séculos, muitas formas de relação entre os humanos e a Terra foram organizadas por modelos de dominação. Estas estruturas, centradas na acumulação, controle e separação, organizaram-se em torno da visão antropocêntrica do mundo, pela ideia que os humanos estão no centro e acima de todos os outros seres.
Porém, inúmeras Cosmo-Convivências indígenas, vivas e diversas, oferecem outros caminhos. Veredas que propõem transformações profundas nos valores e modos de estar no mundo, baseando-se em autonomia, reciprocidade e cuidado. São epistemologias e práticas enraizadas que sustentam modos pluriversais de viver juntos e de ser-mundo. Mas estes valores não vivem num vácuo intocado, emergem, sobrevivem e florescem apesar das feridas abertas do colonialismo e do capitalismo.
Da Cosmo-Visão à Cosmo-Convivência
Cosmo-Convivência é uma perceção andina de mundo que entende a vida como um entrelaçamento contínuo entre seres humanos, natureza, espiritualidade e ciclos cósmicos, baseada em reciprocidade, relacionalidade e harmonia integral. Lembro que Caroline Marim, chama à centralidade visual do pensamento ocidental, uma estética colonizadora que ignora que para muitos povos a experiência do mundo não passa primariamente pela visão, mas pela escuta, toque, cheiro e presença relacional.
Diferente da ideia moderna de “visão de mundo” (cosmo-visão), a cosmo-convivência não separa o sujeito do mundo, pois viver é coexistir, corresponder e cuidar em fluxo com os outros, humanos e não-humanos. O conceito é articulado por Simón Yampara Huarachi, pensador aymara da Bolívia, que propõe a Cosmo-Convivência como fundamento epistémico da filosofia do Suma Qamaña (bem viver andino). Nesta perspetiva, o viver e conviver não se separam, ao ser uma vivência holística onde tudo está inter-conectado, num tecido vital que inclui animais, plantas, divindades, montanhas e rios. A Vida Boa não é individual, mas comunitária, cíclica e territorial. A Cosmo-Convivência é um paradigma ontológico relacional que desafia a lógica da separação moderna e o dualismo natureza/cultura. Uma Cosmo-Convivência ética precisa de descer do planalto e sujar os pés, abrindo caminho para entrelaçamentos sensoriais, afetivos, contextuais e incorporados. Para não pararmos no “ver” (que controla de longe), mas para nos implicarmos em cuidar, sustentar, lamentar e reparar. Porque o mundo não precisa de mais espectadores sentimentais ou consumidores inspirados, mas de testemunhas implicadas.
Cada Cosmo-Convivência é profunda e ecologicamente contextual, carregando consigo uma história de resistência, muitas vezes invisibilizada.
A seguinte lista apresenta algumas dessas filosofias e formas de viver em relação. Para não serem romântica e inocentemente apropriadas pela modernidade não responsável, cada uma contém breves notas sobre as lutas e resistências de cada povo face às opressões coloniais e capitalistas:

Birgejupmi
(Sápmi, Ártico)
Uma forma de vida modesta, baseada no respeito e no cuidado entre seres humanos e não-humanos, enraizada numa convivência sensível e relacional. Este princípio de modéstia e reciprocidade com os não-humanos confronta o extrativismo secular na região Sami. Os Sámi enfrentam há séculos políticas de assimilação cultural e perda de terras devido à colonização pelos estados nórdicos. A expansão de indústrias extrativas, como a mineração e a energia verde, ameaça as suas práticas tradicionais, como a criação de renas. Em resposta, os Sámi têm fortalecido movimentos políticos e culturais para proteger os seus direitos e territórios ancestrais. Povos indígenas Sami enfrentam a expropriação das terras sagradas devido à mineração, barragens, linhas de energia e turismo, especialmente na Noruega e Suécia. Lutam por autodeterminação e pelo reconhecimento legal dos seus territórios.

Kawsak Sacha
(Kichwa, Equador)
A “Floresta Viva” é um ser consciente dotado de direitos, habitado por entidades que protegem os ecossistemas e todas as formas de vida animal e vegetal. O povo Kichwa de Sarayaku defende a “Floresta Viva” resiste a projetos de extração de petróleo no seu território. Em 2012, obtiveram uma vitória histórica no Tribunal de Direitos Humanos contra o governo equatoriano, reforçando a luta pela autodeterminação e proteção ambiental. A sua luta é exemplo global de resistência à exploração capitalista da Amazónia, invocando o direito da floresta de existir como um ser vivo.

Mino-mnaadmodzawin
(Anishinaabek, EUA)
Um valor central de respeito pelo espírito presente em todas as coisas. Os Anishinaabek enfrentam a contínua colonização das suas terras e culturas., e apesar dos desafios, mantêm vivas práticas como o mino-mnaadmodzawin, que enfatiza o respeito por todos os seres. Movimentos como o “Idle No More” destacam a resistência indígena contra políticas governamentais que ameaçam os seus direitos e o meio ambiente. O respeito pelo espírito em todas as coisas ecoa nos protestos contra oleodutos como o Line 3. Povos Anishinaabe mantêm uma longa história de luta pela soberania, enfrentando a colonialidade dos tratados rompidos e a criminalização dos seus rituais.

Nanao ñuu’u
(Mixteca, México)
Um convite a restabelecer os laços entre seres humanos e natureza, fundamentado em equidade, respeito e cuidado com nanao ñuu’u, a nossa mãe. O povo Mixteca, ou Ñuu Savi, sofreu deslocamentos e perda de terras desde a colonização espanhola. Atualmente, enfrentam desafios como migração forçada e marginalização. Para preservar a sua cultura, investem na revitalização de línguas, rituais e conhecimentos ancestrais, resistindo à homogeneização cultural. A reconexão com a mãe-terra entre os Mixtec está ameaçada por monoculturas e mineração. As comunidades indígenas resistem à expulsão dos seus territórios e lutam contra a erosão das práticas agrícolas tradicionais e da língua materna.

Saffu
(Oromo, Etiópia)
Um princípio de vida que orienta o respeito e a justiça para com o espírito (ayyaana) e todos os outros seres. Os Oromo têm uma longa história de resistência contra a dominação etíope. Desde o século XIX, enfrentam repressões políticas e culturais. O princípio de Saffu orienta a sua luta por justiça e respeito, sustentando movimentos como a Frente de Libertação Oromo na procura por autonomia e preservação cultural. A ética espiritual e ecológica do povo Oromo sofre sob regimes que reprimem a sua autonomia. Apesar de perseguições históricas, os Oromo seguem defendendo a sua cultura, língua e a justiça ecológica nos seus territórios.

Satoyama e Satoumi
(Japão)
Práticas que cultivam a interação harmoniosa entre seres humanos e a natureza em paisagens rurais e marinhas. Estas práticas tradicionais de coexistência harmoniosa integrada de terras e mares enfrentam desafios devido à urbanização e industrialização, pela modernização agressiva e abandono rural. A perda de populações rurais e a degradação ambiental ameaçam esses sistemas. Iniciativas comunitárias tentam revitalizar essas práticas, promovendo a sustentabilidade e a preservação cultural. Movimentos locais lutam para revitalizar práticas ancestrais de manejo sustentável que preservam tanto a biodiversidade quanto o tecido social.

Suma Qamaña
(Aymara, Bolívia)
A arte de viver bem, em relações harmoniosas entre todas as formas de vida, reconhecendo a Mãe Terra como um ser vivo. A filosofia do “Bem Viver” dos Aymara foi incorporada na Constituição boliviana, mas enfrenta desafios na sua implementação prática. Conflitos entre políticas estatais de desenvolvimento e os princípios de harmonia com a natureza geram tensões, levando a movimentos sociais que exigem o respeito às cosmo-convivências indígenas. Enfrenta a pressão da mineração de lítio e do desenvolvimento extrativista. Os Povos Aymara resistem ainda à mercantilização da água e à imposição de mega projetos em áreas sagradas.

Sumak Kawsay
(Kichwa, América do Sul)
Conjunto de valores amplos que orientam interconexões humanas e não-humanas, valorizando a diversidade, espiritualidade e modos de vida. Este conceito de “Bem Viver” orienta a luta dos povos indígenas contra modelos de desenvolvimento extrativistas. Apesar de reconhecido constitucionalmente no Equador, a sua aplicação enfrenta obstáculos devido a interesses económicos que dão prioridade à exploração de recursos naturais em detrimento dos direitos indígenas e ecológicos. Esta visão tem sido apropriada por políticas institucionais sem o devido retorno aos povos que a originaram. O risco de se tornar retórica vazia sem transformação real continua a ameaçar o seu significado.

Ubuntu
(África Subsariana)
Um sistema de valores que enfatiza a reciprocidade, o diálogo e a humanidade coletiva: “Eu sou porque nós somos.” A filosofia Ubuntu, centrada na interconexão e humanidade coletiva, foi fundamental na resistência contra o apartheid na África do Sul. Atualmente, enfrenta desafios como desigualdades sociais e económicas, mas continua a inspirar movimentos por justiça social e reconciliação. Ainda assim, muitos países africanos vivem sob os efeitos de extrativismo neocolonial, pobreza estrutural e políticas que desconsideram o saber ancestral.

Whakapapa
(Aotearoa, Nova Zelândia)
Um sentido profundo de conexão cultural que une ancestralidade e natureza, determinando responsabilidades e vínculos com o mundo. Os Māori utilizam o conceito de Whakapapa para afirmar a sua conexão ancestral com a terra. Desde o Tratado de Waitangi em 1840, enfrentam violações de direitos e perda de terras. Movimentos de resistência, como os protestos contra a apropriação cultural e a marginalização, tentam restaurar a soberania e preservar a cultura Māori. A ancestralidade como teia viva de relação foi deslegitimada por políticas colonialistas. Hoje, o povo Māori continua a lutar por soberania sobre terras, rios e montanhas, como demonstrado na luta pela personificação jurídica do rio Whanganui.
Estas filosofias não são “formas alternativas de pensamento”, mas práticas milenares e coletivas enraizadas, sistemas vivos que sustentam mundos em relação. Lembram que sustentabilidade não é apenas uma técnica, mas uma transformação radical na maneira como nos situamos e responsabilizamos, na teia da vida. Estes princípios não são filosofias abstratas, mas práticas ecológicas e incorporadas de relação com o mundo, que vive e resiste em territórios feridos. Que esta lista nos lembre que a transição para relações de cuidado não é só uma mudança de valores, mas uma luta pela vida, pela dignidade e pela co-existência pluriversal.

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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.