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Corpo de deus — Corpo da Terra
Hoje, recuso o milagre domesticado.
Marca-se, no calendário litúrgico, o Corpo de deus, o Corpus Christi. Na tradição católica, celebra-se o milagre da transubstanciação: pão e vinho tornados corpo e sangue sagrados, memória da última ceia.
Mas o meu é o calendário vivo dos mantos de penas, das plêiades, dos enxames e do chão úbere.
Chamam-lhe milagre, mas esquecem-se do verdadeiro prodígio anterior à sua teologia. Negligenciam que o trigo só cresce porque o solo apodreceu os mortos, o sol o dourou e o vento o dançou. Deslembram que o vinho só existe porque os fungos devoram o açúcar das uvas. Abominam que nenhum corpo é puro. Chamam sagrado um ritual que esconde a brutalidade da separação, do homem separado da terra; deus separado do mundo; sacrifício separado da abundância.
Porque para lá da doutrina, ou talvez antes dela, ressoam ecos mais antigos. Ouve-se o canto das primeiras colheitas: do trigo que cresce pelas entranhas do solo, agora maduro, fermentado e transformado em pão; das uvas a fermentar sob o corpo dos fungos, no mosto tornado vinho; da dança invisível de milhares de vidas e frutos de um pacto íntimo entre ciclos, sol, água, terra e mãos humanas.
De quantos corpos é feito um corpo de deus? Corpos nossos.
Corpo coletivo que partilha a mesa da ecologia que vibra em ciclos de doação e regeneração.
Hoje lembro a dança permanente da vida que se oferece para continuar a vida. A colheita como ato de gratidão, não de posse, domesticação ou acumulação. Os corpos como territórios sagrados de interdependência e impermanência. O vinho e o pão como símbolos de uma abundância que se partilha entre humanos, fungos, abelhas, rios e tempo.
Celebrar o Corpo de deus é escutar que não há corpo sagrado sem a dádiva anónima de milhares de corpos invisíveis. Pois o pão não vem de mãos divinas, mas da sagrada aliança entre cosmos e chão fecundo. O vinho não desce do céu, mas surge da intimidade entre as uvas, os fungos e a decomposição.
O escândalo do entrelaçamento recorda-nos que a vida é fecundada na podridão. Ajoelho-me perante o caos fértil, onde o corpo dos deuses e deusas são húmus e o seu o sangue são uvas fermentadas em canções fungicas. Os corpos vivos de deuses, a própria Terra, que se oferecem em alimento, em abundância cíclica. Que dá e devora. Celebramos o milagre quotidiano da transubstanciação ancestral, da semente que se torna pão; do fruto que se transforma em vinho; do alimento ao corpo; do corpo ao lugar. Este é o altar, esta é a mesa, porque o verdadeiro milagre sempre foi ecológico, de cosmos vivo e chão fecundo.

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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.