A Terra como Dicionário

 

As palavras forjam identidades através de histórias, memórias, e metáforas.
Estes sons antigos tecem realidades com diferentes pronúncias e significados, criam e destroem percepções, ideias, e visões.

Os dialectos são sistemas vivos, evoluindo juntamente com a cultura e actividades do dia-a-dia. Mas a primeira camada de linguagem é a Terra.

A raiz mais antiga destes sons que criamos para comunicar amor ou ódio é uma reverberação directa da nossa paisagem circundante. Utilizamos o vento local e o ar que corre através das nossas cordas vocais para reproduzir as vibrações sonoras. A caixa torácica expande e contrai, no ar que entra e sai, envolvendo visceralmente voz, corpo e território. Somos essencialmente a paisagem a falar. Os lugares cantam-se em nós.
As formas naturais e as suas interacções cíclicas criam ambientes únicos e singularmente ricos, cheios de fluxos de consciência imanentes. Na visão do mundo indígena, tudo é sagrado e vivo, cada rocha, rio, nuvem, ou vento.

Cada lugar está cheio de sabedoria e agência. Todas as paisagens são sistemas dinâmicos de vida.

Em línguas verbais, escritas, como as que utilizam o alfabeto latino contemporâneo, a ligação original à Terra foi cortada, separando os sons da sua natureza e lugar ecossistémicos, criando espaço para abstracções fora do contexto e globalizações. Os nossos dicionários tornaram-se dogmas impressos, restringindo o fluxo vivo do sistema linguístico que deveria mover-se com os ritmos do lugar.

Mas os lugares continuaram a falar através de nós de forma subtil. Os sussurros de pedra tornaram-se mudos, mas ainda ouvimos os cantos dos pássaros, o vento através das árvores, ou a chuva a cair.

Os sons crus, como gemidos, gritos, murmúrios, ou silêncios, saem de rompante quando palavras limpas e organizadas não são suficientes para descrever a nossa experiência. Essas melodias primordiais que ressoam directamente do coração libertam-nos dos confinamentos da estrutura gramatical.

Uivamos, sussurramos, e choramos de amor ou desespero. Gritamos, lamentamos, ou rimos da intensidade de sermos porosos à experiência viva.

Voltemos a ligar-nos à Terra como um dicionário, recordando o léxico de raiz embutido na natureza. Deixemos que o lugar em que nos encontramos seja a referência, recebamos a informação que emerge, o significado flui, os usos, e as origens das experiências vivas – não listadas em ordem alfabética – mas obtidas numa profunda, complexa, orgânica e agência do sistema antigo.
Os significados vivos que emergem da paisagem, uma vez ouvidos, voltam a ligar-nos ao cosmos, ajudando-nos a recordar o nosso verdadeiro lugar.

 

©Sofia Batalha 2020

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.