A Lógica da Batata
A batata foi o primeiro vegetal domesticado na região do atual sul do Peru e extremo noroeste da Bolívia, desde à 8000 a 5000 anos, sendo um tubérculo presente nos mitos das culturas locais — tal como a deusa Axomama, ou Mãe das Batatas, uma das filhas de Pachamama, a Mãe Terra do panteão Inca. Para além de alimento fundamental, as comunidades Quechua, usam as batatas para o tratamento de dores de cabeça, hemorróidas, úlceras e queimaduras. Há cerca de 200 espécies de batatas selvagens encontradas nas Américas. Na verdade, o que conhecemos como “a batata,” Solanum tuberosum, é apenas um fragmento da diversidade genética encontrada nas 5000 variedades de batata que ainda crescem nos Andes.
Numa visão ecossistémica uma batata conta uma parte da história de ecossistemas e culturas inteiras. Até mesmo no relato fundo da nossa própria espécie, como referido num artigo do Público de 1990, A lógica da batata, onde Clara Barata aponta um estudo que sugere um grande salto evolutivo quando o Homo Erectus começa a usar o fogo para cozinhar tubérculos, há 1,9 milhões de anos: “Quando a comida é cozinhada, a lógica é transportá-la até um sítio comum, para ser cozinhada — e onde é mais facilmente roubada. (…) Entre hominídeos que cozinhavam, haveria motivos para estabelecer novas formas de cooperação.” Este estudo sugere que cozinhar tubérculos, além de mudar a dentição e trazer uma equivalência nas estaturas de ambos os sexos, também mudou os hábitos colectivos dos grupos de hominídeos. Estas mudanças abriram espaço a colaborações mais complexas, de alimento e cuidado, entre os elementos de cada grupo.
Mas a batata só chega em 1537 à Europa, por um grupo de conquistadores espanhóis que lhe chamavam “una especie de trufas.” A batata encontra uma desconfiança inicial, pois tanto a igreja lhe chamava comida do diabo, como o povo se recusava a comê-la por medo de envenenamento — a desconfiança e medo vinham pela novidade e por pertencer à família das beladonas, podendo ser uma criação de bruxas ou demónios. Começa por ser consumida pelos marinheiros, por evitar o escorbuto pela vitamina C que contém. Séculos mais tarde a batata acaba por ter um grande efeito na sociedade europeia, massificando a produção agrícola no início da era moderna — apesar da falta de diversidade genética das poucas variedades extraídas da América do Sul. Durante a Pequena Idade do Gelo europeia, quando as culturas tradicionais falharam, podia contar-se com a batata nos anos mais frios. No século XIX é já o alimento principal da classe operária e classes mais pobres, culminando na grande fome na Irlanda com a chegada do míldio em 1845.
Esta sequência segue a linha da limitada mente moderna, de como não entende as redes complexas dos múltiplos sistemas vivos, ao extrair apenas uma espécie entre cinco mil variedades, o que, séculos mais tarde, leva à morte de 1.000.000 de irlandeses.
Margarida Elias, no seu blogue Memórias e Imagens, traz excertos de um texto de Alfredo Margarido, intitulado “O pouco e difícil simbolismo da batata.” Elias cita: “Deve todavia notar-se que a batata não aparece ligada à paisagem: (…) a batata só existe em função do trabalho. (…) a batata é geralmente considerada como o pão dos pobres.” O pouco e difícil simbolismo da batata, no título do artigo, fala de como este tubérculo não existe nos mitos europeus antigos, pois não faz parte da sua paisagem eco-simbólica original. Mas reporta ao que representa na modernidade: uma monocultura massificada e empobrecida de escassez. Tal como representada na arte europeia pela miséria e penúria de quem planta e descasca batatas. Apesar da riqueza nutricional da batata, o mito europeu toma forma pela fome e pobreza, mas repare-se que não tem a ver com a planta ela própria, mas com a forma desvinculada de como foi introduzida no ecossistema europeu.
A expressão popular “a lógica da batata” carrega muitas camadas. Refere-se a coisas sem sentido, lógicas absurdas, mas que, paradoxalmente, até podem fazer sentido. Pode ser usada tanto com humor, apelando a algo que não compreendemos verdadeiramente, ou de forma desdenhosa, depreciativa e arrogante para ignorar ou rebater algo que aparentemente não faz sentido. Afinal as batatas são consideradas o alimento das classes menos favorecidas, um alimento pobre, além de serem meras plantas, vida inferior ao ser humano. Uma batata, apenas um simples tubérculo, não consegue falar ou raciocinar, não tem razão, consciência, ou sequer ideias, achamos nós — as batatas não argumentam logicamente, justificamos.
Mas isso não significa que uma batata seja só e apenas uma batata.
Zoë Schlanger, escreveu na edição do The Atlantic, em junho de 2024, que os cientistas se têm debatido se conceitos como a memória, a consciência e a comunicação podem ser aplicados para além do reino animal. “A consciência já foi vista como pertencente apenas aos humanos e a uma pequena lista de animais não humanos que actuam claramente com intenção,” escreveu Schlanger num artigo adaptado do seu livro, The Light Eaters: How the Unseen World of Plant Intelligence Offers a New Understanding of Life on Earth. Alguns cientistas defendem agora que as plantas também devem ser consideradas inteligentes: “(…) a ideia de que as plantas podem comunicar intencionalmente umas com as outras continua a ser um conceito controverso na botânica,” escreve Schlanger. Estando já demonstrado a sua sensibilidade ao som, armazenamento de informação para ser acedida mais tarde e comunicação entre si e até com determinados animais. O desafio são as definições de lógica, comunicação e intencionalidade para além do humano, serem subjectivas e difíceis de demonstrar na limitada estrutura de conhecimento ocidental. Não há dúvida de que as plantas em geral e a batatas em particular, estão empenhadas no desdobramento da sua própria geração, moldando o ambiente em que se encontram biológica e sensorialmente enraizadas.
É um acto de humildade intencional recordar que as plantas são um reino de vida inteiramente seu, produto de inovações evolucionárias desenfreadas que se afastou do nosso ramo de vida quando éramos ambos criaturas unicelulares a flutuar no oceano pré-histórico, como refere Schlanger. No entanto, os padrões e ritmos das plantas têm profundas ressonâncias com os nossos.
As muitas batatas terão a sua própria lógica, nós é que nem a compreendemos.
Referências:
- Memórias e Imagens: Da prosaica lógica da batata
- A lógica da batata | Praça do Bocage
- A lógica da batata | Ciências | PÚBLICO
- https://www.etymonline.com/word/logic
- Potato | HerbaZest
- Britannica, The Editors of Encyclopaedia. “potato”. Encyclopedia Britannica, 9 Dec. 2024, https://www.britannica.com/plant/potato. Accessed 22 December 2024.
- History of the potato. (2024, December 4). In Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_the_potato
- The Mysteries of Plant ‘Intelligence’ – The Atlantic
- Chef Silva: A História da Batata
- Axomama – Wikipédia, a enciclopédia livre
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