A Digestão da Serpente

 

Vibrantes viagens sonhadas reveladas algures no tempo.
Numa teia eco-mitológica nunca se sonha sozinho, e os sonhos não são só nossos; ofereço-os aqui como me foram oferecidos.

 

{a situação}

 

Quando tinha três anos, vivia com os meus avós no Alentejo. Era uma casa antiga, escura e densa, labiríntica e cheia de sombras. Móveis e tecidos velhos, poeirentos e pesados ocupavam os espaços delimitados por um papel de parede verde-escuro, meio aveludado, meio iridescente. A maioria das divisões nem sequer tinha janelas e a luz fraca entrava indiretamente pelo pequeno saguão. Aqui, as casas tradicionais têm menos janelas como protecção do calor abrasador e seco do verão e dos invernos gelados. A alcatifa castanha clara, manchada e coçada pelo uso, ocupava todas as divisões, exceto a cozinha e as casas de banho. Os azulejos castanhos escuros, amarelos ou pretos e brancos tinham desenhos orgânicos de onde escapavam monstros, como borrões de tinta preta no papel. Figuras que, como nuvens, agregavam e dispersavam formas em movimento. Ficava a olhar para eles durante horas, a ver as suas histórias transformarem-se através da minha imaginação. Ao lado destes azulejos, na cozinha, ficavam as escadas de madeira para a cave, cobertas com a mesma alcatifa velha e manchada.

A cave era a divisão mais profunda e escura da casa; paradoxalmente, era também onde ficava a porta da rua. Passávamos continuamente por um corredor minúsculo, que ligava a porta de entrada às escadas da cozinha -eu sempre a correr, cheia de medo de toda aquela escuridão viscosa. Cebolas, alho, vinho e grandes recipientes de metal com azeite eram guardados na parte húmida e esconsa da cave. O cheiro do azeite enchia-me as narinas sempre que acompanhava um adulto lá abaixo. A única fonte de luz, com o seu fio descarnado e emaranhado no teto, era amarela fraca e intermitente, nunca iluminando os cantos deste covil. Enquanto ficava ali agarrada à saia de alguém, sem me atrever a olhar em volta, os pêlos da nuca eriçavam-se, num misto de curiosidade e medo. “Então, não me digas que tens medo de ir lá abaixo,” diziam-me constantemente. O meu corpo preparava-se sempre para escapar pelas escadas e fugir para o conforto da cozinha.

Muitos anos mais tarde, voltei a este lugar nos meus sonhos. Os meus avós já tinham falecido e a casa tinha sido vendida anos antes. Nunca mais regressei. Mas o lugar ficou gravado em mim. A minha imaginação vívida levou-me lá, ou o lugar atraiu-me, mais uma vez…

 

{o sonho}

 

Vi-me num corpo de três anos, com mãos pequenas e sapudas, na cozinha, sentada na soleira da porta, a olhar para os azulejos do chão, como sempre costumava fazer. Alguém chama o meu nome lá de baixo. Uma voz quente e fria ao mesmo tempo. Desconcertante. Uma voz grave que me é familiar, mas, ao mesmo tempo, irreconhecível. Os pêlos da nuca eriçam-se. A voz continua a chamar-me, e eu sei que tenho de a seguir. Mas não quero fazê-lo. As escadas estão escuras, mas ainda consigo ver as manchas antigas na alcatifa dos primeiros degraus, o que me conforta. Afinal, sei onde estou. Lentamente, aterrorizada, desço degrau a degrau. Nunca antes me atrevi a descer à cave sem um adulto.

Degrau a degrau, mergulho lentamente no abismo escuro, seguindo a voz que sabe o meu nome. Uma vez lá, vejo que a luz bruxuleante está acesa, mas não ilumina nada para além da lâmpada. A escuridão envolve-me, e o medo também. Deparo-me com os vultos dos grandes recipientes metálicos de azeite e o cheiro pungente invade-me o corpo. Lembro-me! Logo atrás dos potes, dois colossais olhos verdes brilham no escuro. Sorriem quando me vêem. Talvez seja um sorriso malicioso ou de boas-vindas, mas não sei dizer, porque o medo congela-me. Os olhos iridiscentes sussurram “anda, chega-te mais perto.”

De repente, o contorno de uma enorme Serpente Negra emerge das sombras impenetráveis. Um corpo maciço e vasto, ocupando agora toda a divisão, erguendo-se bem acima da minha cabeça. Num movimento rápido, a sua boca aberta desce sobre mim e engole-me por inteiro. Traga-me para dentro do seu corpo. Voraz e completa. A surpresa e o espanto sobrepõem-se ao medo. Com o meu corpo de três anos e pequeno, encontro-me no interior da grande Serpente, que lentamente me digere e consome. O seu corpo contorce-se e comprime-me. Aperta e esmaga. Mas, não sei quem absorve quem. Sinto-me estranhamente acolhida, inesperadamente abraçada e segura nesta digestão arquetípica e alquímica. O medo desaparece, aqui no útero fecundo. Assimilação. Incorporação. Integração. No ventre da grande Serpente Negra, estou no coração primordial e em casa.

Quando ela me cospe, acordo.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.