Celebração do lançamento do livro “O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia”

Prefácio de Ana Alpande

Edições Mahatma

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À beira da floresta queimada

Porque escrevi O Santuário

Estou num estado de limbo, instável e congelado. Mente dispersa, corpo rígido, exaustão.

Há momentos em que as palavras parecem insuficientes para descrever o mundo em que vivemos.

Momentos como estes.

A guerra cresce. Genocídios e ecocídios acontecem diariamente. A lógica fascista da pureza, da separação e do controlo volta a crescer como uma febre antiga. E, por baixo de tudo isto, a própria Terra treme sob o longo legado da violência extrativista. Mas esta crise não começou ontem; não é nova. Na verdade, o mundo está a morrer de uma ferida antiga e infetada.

A longa ruptura

Durante anos, tenho perguntado: De onde vem esta história?

Não apenas as guerras e os genocídios que vemos hoje, mas a cosmologia profunda que os tornou possíveis, o mito da separação, da dominação, do excepcionalismo… a conquista da própria Vida. A ruptura purulenta que sangra nos nossos corações e terras modernas.

No Santuário, volto-me para o lugar dos meus antepassados, a terra onde os meus ossos repousam, a Península Ibérica, com os seus modos colonizadores, e escuto o que se esconde por baixo da sua amnésia histórica. Antes dos impérios, do cristianismo ou das conquistas sobrepostas, esta terra era tecida com histórias selvagens de serpentes e rios, pedras e avós, ciclos lunares e parentes animais. Não pura ou intocada, mas relacional.

A grande ruptura chegou lentamente, através da colonização da terra, dos corpos e das histórias. Através do exílio das antigas deusas e do corte das florestas, através da mecanização do conhecimento e da extração da vida para a propriedade. A amnésia instalou-se. A dormência fixou-se a seguir.

Não é uma nostalgia

O Santuário não é um anseio por um passado dourado perdido. Não estou à procura de um retorno impossível, nem persigo alguma fantasia de pureza cultural. A pureza é, em si mesma, um sintoma da doença.

Em vez disso, O Santuário é um ato de escuta. Uma forma de me sentar com os restos de emaranhados, perdas, violências e sobrevivências. Uma forma de perceber a complexidade quebrada, híbrida e, por vezes, insuportável de onde estamos e ainda assim sentir os sussurros do mundo não humano por baixo de tudo. As histórias antigas não estão mortas, não foram totalmente domesticadas. A terra e o corpo lembram-se. Pois mesmo no meio do colapso, a Vida continua a convidar-nos a regressar à reciprocidade, ao luto, à humildade e à alegria selvagem.

Entre o luto e a capacidade de resposta

Se o meu trabalho pertence a algum lugar, é nesta borda abissal trémula, entre o luto e a responsabilidade, usando o termo de Donna Haraway, colapso e parentesco, encantamento e os pequenos atos diários de retalhar.

Os fascismos que surgem agora são as convulsões terminais de uma história que se recusa a enfrentar a sua própria morte. O Santuário é a minha maneira de ficar no limiar, não para negar a escuridão, mas para a abraçar. Para recordar outras lógicas, relações antigas, formas mais selvagens de estar num mundo não humano que continua, apesar de tudo, a pulsar com vida.

Se estas palavras chegarem até ti no peso deste momento, que te sintas apoiado. Não caminhamos sozinhos.

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