Fogo
Estes dias de extremo calor trouxeram-me ansiedade. Corpo quente e febril, respiração pesada e densa. Cabeça fragmentada e corpo ausente.
Importa muito as palavras que usamos para descrever a realidade. Nas notícias, as áreas arborizadas (abstenho-me de usar o termo “floresta”, pois infelizmente, a maioria seria monocultura de pinheiro e eucalipto, onde não existe a biodiversidade complexa de uma floresta, sendo por isso muito mais vulnerável à devastação pelo fogo), mas como dizia, nas notícias a referência é sempre a combustível, que tudo o que está à volta das casas é “apenas” tido como combustível.
Simplesmente um cenário inerte de matéria-prima à espera da primeira faísca. Lenha pronta a tornar-se carvão.
Com as chamas à porta e sem água para as aplacar, as populações locais desesperam ao perderem anos de vida. Falam em limpeza, limpar o combustível para que não os queime a todos.
Apenas combustível.
São milénios de uma linguagem que nos dissocia da complexa realidade eco-sistémica da Vida.
São centenas de anos de trágica gestão do território, assente em políticas de ganhos rápidos e investimento em monocultura, de total desrespeito pela vida silvestre e mesmo humana.
São décadas de controle e reducionismos que tendem a ignorar as profundas interrelações entre as coisas. Milénios de proibição de rezarmos às árvores e às pedras.
Em vez de seres soberanos que nos dão Vida, as árvores passaram a ser apenas combustível.
Matéria inerte de ganhos e perdas. Apenas combustível. Aqui, deixamos há muito de ser guardiões da Vida. Deixamos de reverenciar, sagrar, ver ou ouvir o complexo ecossistema que nos acolhe e nutre a cada momento.
Estes dias de fogo trouxeram-me preocupação. Ouvindo sobre os múltiplos fogos, hectares e hectares queimados. Vida reduzida a cinzas. Silêncio.