Arrumar
Mantemos as nossas casas higienizadas e organizadas a todos o custo, pois, “a ordem visual descansa o cérebro”, e os ambientes organizados trazem outra qualidade de vida. É certo. Mas porquê? Já pensamos porventura nos milhões de anos de evolução biológica, bioquímica, bioelétrica dos nossos corpos em relação aos lugares e paisagem que habitam? Porventura imaginamos que a enorme potência da nossa visão de fundo e em profundidade, a que tem a capacidade inata de discernir ao longe é a força de detectar os mais delicados padrões num caos selvagem? Já parámos para sentir o quão superficializada e limitada se encontra a nossa visão de fundo – por todos os ecrãs bidimensionais para onde olhamos horas a fio – tornando-se uma sombra do que já foi?
De que forma estas paisagens do lado esquerdo do cérebro, sempre ortogonais, higienizadas, assépticas e organizadas ao milímetro, suspendem a nossa compreensão sensorial do mundo?
Limitando profundamente a nossa capacidade de viver e entender os contextos vivos e caóticos, que vibram num pulsar profundo guiados por maestros misteriosos. Limitação essa que aplaina o discernimento de padrões na complexidade selvagem?
A nossa casa-individual nunca está desligada da casa-mundo e não podemos obliterar esta relação. A que custo e sobrecarga de extracção, possivelmente no sul-global, ou bem longe da nossa privilegiada porta, ousamos exigir a constante “harmonia do nosso lar”?
O tempo de agir em consciência e responsabilidade já iniciou há mais de 30 anos, mas tardamos em assumir que a nossa abundância e harmonia estão intrinsecamente ligadas às zonas de mineração que implodem ecossistemas inteiros, comunidades e crianças, que a roupa que vestimos e compramos cegamente tem custos sistémicos violentíssimos.
Não serve este texto para abrir um buraco de culpa, mas para dar contexto de forma a decidirmos diariamente de outra forma.