Coleção Casa Simbólica

Uma Casa Feliz

Um Lugar Feliz

Pequeno Livro da Imanência

Quando tentamos dar ordem à casa

Uma das coisas que ouço muitas vezes, em aulas e consultas, é algo como “o feng shui não gosta de nada desarrumado”, “o feng shui diz que plantas aqui nem pensar”, “segundo o feng shui esta cor é errada”. Na minha cabeça aparece sempre um senhor de olhos rasgados e sorriso maroto, com uns grandes bigodes e uma grande bengala. Será ele o feng shui? O que não gosta de nada desarrumado? Ele vive nas nossas casas? E que nos julga silenciosamente pelos cantos, quando deixamos algo espalhado?

Costumo responder que não é o feng shui, seja um sábio ancião oriental ou um conceito, que vive nas nossas casas. Somos nós. E então a pergunta coloca-se: quem somos nós afinal? 

Não há uma resposta final a esta questão, e ainda bem. Porque somos todos diferentes, diversos e variados. O importante é que todos trazemos ferramentas biológicas integradas, de conexão e resposta visceral aos lugares onde estamos de passagem ou vivemos. Este corpo que nos habita contacta e responde directamente ao contexto onde se encontra. A sua função, se é que tal coisa existe sequer, é encontrar equilíbrio num sistema em eterna e constante mutação. Para isso responde e modifica-se: treme quanto tem frio, sua quando tem calor, relaxa com menos luz, activa-se com mais iluminação. Isto só assim de forma simples. Porque, na verdade, esta relação é extremamente complexa e viva. Se estivermos envolvidos em paredes vermelhas os batimentos cardíacos aumentam, o que pode ser bom ou mau dependendo do que ali queremos fazer. Se for dormir, não é o melhor local.

Vivemos numa realidade senciente, onde tudo à nossa volta está vivo. Não no limitado conceito de vida dado pela ciência ocidental. Mas uma vida latente e presente em toda a matéria. Seja mais densa e pesada ou leve e rarefeita. Tudo comunica, sussurra, interage e responde. Como o nosso dia pode mudar se virmos uma fugaz nuvem com uma forma engraçada ou um arco-íris. Como uma divisão pode mudar com o desabrochar de um botão de flor. Nesta vivência recíproca e complementar com o contexto onde nos estamos, encontramos co-regulação e co-criação a cada subtileza. A cada sensível fio de conexão, a cada memória, emoção ou razão. A presença inteira e sem julgamento é uma ferramenta poderosa de interação visceral com a vida. Esta perspectiva integrada de vida leva-me a outro tema: o das consultas de feng shui.

Quem comigo estuda já me ouviu dizer muitas vezes que nós os consultores de feng shui temos o maior dos privilégios: o de entrar directamente no tecido mais íntimo da realidade dos clientes. Entramos nos seus espaços de vida do dia a dia, no seu núcleo mais tenro, na essência da sua vida. Este privilegio não deve ser tomado de ânimo leve, pois não é um direito, mas sim uma responsabilidade. Alguém que nos abre a porta à sua mais íntima realidade deve ser tratado com o maior respeito, cuidado e compromisso. O acesso a este âmago doméstico de privacidade deve ser feito com gentileza e consciência.

É preciso cautela na observação e comunicação, pois uma consulta de feng shui não é julgamento. É diagnóstico e observação. 

Infelizmente é muito fácil, pela própria sombra histórica desta ferramenta milenar que o ocidente teima em não querer ver, o consultor colocar-se num papel hierarquicamente superior de poder e coação perante os seus clientes. Confesso que me preocupa muito os vários testemunhos de ‘bullying’ em consulta que me trazem, onde a vulnerabilidade dos habitantes é aproveitada numa actuação que alimenta o medo, passando a ser a referência central de toda a vivência. O medo de não ter a casa perfeita, a vida perfeita, da banca-rota e da morte. Tudo é explorado numa dança desigual, traumática e violenta. Onde a casa deixa de ser um local de aconchego e presença (com todos os desafios a melhorar que possa ter), passando a ser um local de controle e limitação. Onde cada movimento é restringido em função do bom ou do mau feng shui. Numa vivência na qual as supostas “regras” do feng shui passam a ter o monopólio e exclusividade sobre as decisões na casa e dos habitantes. Consequentemente limitando e aprisionando a natural vivência cíclica e plural da casa e da vida.

A procura de regras fáceis e rápidas pode tornar-nos vulneráveis a este tipo de intervenção, fazendo-nos ignorar a nossa soberania e sabedoria. O medo cega-nos e desconecta-nos.

Nós os consultores temos a responsabilidade de fazer um trabalho ético e os clientes a opção critica de seguir ou não uma linha de actuação onde não se revejam.